A filial de Liverpool da Galeria Tate - menos famosa do que suas duas irmãs de Londres - atrai público numeroso com uma das maiores exposições montadas sobre o artista surrealista belga René Magritte (1898/1967), cujas imagens de objetos "fora do lugar" correram mundo. As obras vieram para cá por empréstimo de museus e coleções particulares em vários países.
A partir dos anos 60, e sobretudo após a morte de Magritte, a obra dele influenciou toda uma geração de artistas e tornou-se parte de uma consciência visual comum, com ecos na linguagem de filmes, publicidade e arte comercial. Ele nos remete à noção de arte como deslocamento no tempo e no espaço. Justifica a atração da obra por estar fora de lugar.
É o que faz hoje, por exemplo, o artista britânico de vanguarda Damien Hirst, quando mostra num museu um tubarão embalsamado. O espectador pode gostar ou não, mas se surpreende com a justaposição. E pode achar que o objeto assim se transforma em obra de arte. Críticos certamente concluíram dessa forma e acabaram dando a Hirst um status de estrela internacional no mundo da arte contemporânea, o que lhe assegurou fama e fortuna.
Fenômeno parecido se deu com o tcheco-americano Andy Warhol, que atraía pouca atenção como artista gráfico produzindo pequenos sketches para revistas nos Estados Unidos. Até que ele bombardeou o mundo da arte pop nos anos 60 com a reprodução dos objetos de consumo diário dos americanos, porém ignorados até então como expressão visual. Pintou o óbvio da lata de sopa Campbell ou da garrafa de Coca-Cola, tirando os objetos da prateleira ou da mesa de jantar e levando-os para a tela.
Anos antes, já tinha surgido a arte conceitual, com o célebre urinol do francês Marcel Deschamps, que sacudiu os padrões da arte no início do século vinte, ao expor em museu de arte um objeto banal, porém fora de sua discreta função rotineira no banheiro. Até hoje, críticos culturais discutem se o urinol de Deschamps é arte ou um simples gesto de deboche, uma briga furiosa e contínua, que por certo ia deliciar o artista.
Magritte expande nosso conceito de realidade e nos leva a contemplar com novo olhar até mesmo a paisagem banal, com misturas e justaposições que surpreendem. "Descobri um novo potencial inerente às coisas", disse ele. "A habilidade de se transformar gradualmente em algo diferente, um objeto virando algo que não é ele mesmo"
Magritte deixou sua Bélgica natal na segunda década do século 20, com o destino de todos os artistas ambiciosos da época: Paris. Identificou-se logo com o movimento surrealista que explodia na França, com André Bretton à frente de excêntricos, que iam de Luiz Buñuel com seus filmes delirantes, e Salvador Dalí com seus delírios pintados. Magritte era mais burguês e bem comportado de seus companheiros do movimento, o que certamente contribuiu para a demora em ser aceito pelo grupo. Mas acabou se integrando.
"Ser surrealista significa barrar de mente todas as lembranças do que já vimos e ser capaz de procurar o que nunca foi", disse Magritte. Seu surrealismo consistia menos em distorcer imagens, estilo Dalí com seus relógios derretidos, e mais em juntar o que não costumamos ver lado a lado. Como uma locomotiva em movimento saindo de uma lareira na sala de um apartamento, obra de 1938 a que deu o nome de Tempo Transfixado.
Magritte dizia que nenhum objeto é tão intimamente ligado a seu nome que não possamos dar-lhe outro nome mais apropriado. Assim, ele pintava um objeto óbvio do cotidiano e dava-lhe o título de algo também banal, mas que não corresponde ao que vemos. O que ele dizia de maneira instintiva é identificado por linguistas com o jargão acadêmico que distingue significante de significado. As obras de Magritte inspiram sorrisos nos lábios, têm humor, são engraçadas.
O surrealista bem comportado em sua vida pessoal, conhecido pela imagem do homem com chapéu-coco, tanto em seus quadros quanto nele mesmo, pouco se incomodava com a pergunta que costuma irritar artistas de várias tendências, quando lhes cobravam explicações sobre o que significa a obra: "não significa nada, porque o mistério nada significa, não se pode conhecê-lo".
Fonte: Diário de Marília