Título Até fevereiro, mostra traz tom cruel que envolve o imaginário infantil
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A infância pode ser vista como um momento de magia e de liberdade, mas é o tom cruel, irônico e nostálgico que sobressai em Mirada desobediente - Do pueril ao infantil, em cartaz no Espaço Cultural 508 Sul. O curador Matias Monteiro reuniu trabalhos de 14 artistas de Brasília para refletir sobre aspectos do universo infantil e conseguiu extrair olhares nada pueris e bastante contundentes.

Monteiro partiu da própria pesquisa desenvolvida em tese de mestrado para chegar ao formato de Mirada desobediente. A infância pode evocar sentimentos ingênuos, mas não são esses o foco dos artistas. "Na psicanálise, a gente vê que o infantil não se restringe à criança, está no adulto também", repara o curador. Houve uma época em que crianças e adultos partilhavam um mundo semelhante. Monteiro lembra que foram as ideias iluministas as responsáveis por separar claramente as práticas infantis da vida adulta. A concepção de infância e infantilidade são, portanto, coisas distintas na proposta do curador, mas se encontram na maioria dos trabalhos.

Na parede reservada para Gê Orthof, o rei é Pinóquio. A instalação Crime e castigo resgata o personagem infantil para falar de desejos e desobediência. Imagens das mais diversas versões de Pinóquio - incluindo algumas bem perversas e outras um tanto pornográficas - dividem espaço com referências ao romance de Dostoiévski e a textos de Henry David Thoreau. Deste último, Orthof utiliza trechos sobre a desobediência civil, ideia defendida por Thoreau como meio de resistência individual às regras impostas pelo estado.

O artista sugere ao espectador associações livres entre ideias que giram em torno de punição para a liberdade. "A história de Pinóquio pode ser lida de diversas maneiras, mas é muito estranha essa coisa do Geppetto criar um menino para brincar com ele. E esse menino vai sendo castigado ao adquirir a liberdade", avalia o artista. "Crime e castigo é uma parábola sobre a desobediência e o castigo. Eu quis construir o trabalho fazendo um rizoma com ideias e materiais."

Falos expostos
Mais diretos, trabalhos como os de Eduardo Belga, Waleska Reuter e Clarice Gonçalves também transportam o espectador para um mundo libertino. Belga se apropria de ilustrações de livros antigos para construir um mundo de falos expostos. As cândidas gravuras de esculturas se tornam protagonistas de orgias com a intervenção do artista. Na pintura de Clarice, o menino de rosto coberto parece observar a própria ereção e a escultura de Waleska explicita o pênis do que poderia ser um anjinho de jardim.

O devasso cede lugar ao melancólico na instalação de Ruth Sousa. Lembranças inventadas é um teste delicado. Ruth fala de memórias imaginárias, inventadas, versões que poderiam ter sido realidade mas nunca saíram do campo da mentira. "A ideia era criar um registro documental que comprovasse a versão. A ideia surgiu quando percebi que a fotografia importa muito mais pela série de projeções que se faz a partir da imagem do que pelo fato que ela registra", diz a artista. Assim, Lembranças inventadas traz histórias que não existiram, mas foram imaginadas e desejadas, embora seus protagonistas tenham seguido outros rumos.

No vídeo Puberdade e na instalação Por favor, não ultrapasse a linha branca, Allan de Lana fala de limites. No primeiro o tema é a passagem da infância à adolescência com imagens que evocam o nascimento dos pêlos e o descontrole enfrentado pelo corpo quando se deixa para trás a estrutura infantil. No segundo, uma linha branca divide o chão da galeria. Em uma das extremidades repousa a miniatura de um avião. "A instalação é feita para criar controvérsia entre a forma como se apresenta e o título. Todo espaço cultural tem um limite de até onde o espectador pode chegar e a montagem do trabalho não permite que não se ultrapasse a linha branca", avisa De Lana. A linha será ultrapassada de qualquer forma e, com o tempo, se desintegrará graças ao desgaste do pisoteamento. Trabalhos menos provocativos e mais pueris também aparecem na exposição, caso das Marinas secas de Yana Tamayo, que evocam os desenhos feitos com recortes de papel mas é o limite entre o perverso e o pueril que marca Mirada desobediente.

Foto: Obra de Yana Tamayo

MIRADA DESOBEDIENTE - DO PUERIL AO INFANTIL
Exposição de 14 artistas de Brasília. Curadoria: Matias Monteiro. Visitação até 15 de fevereiro, no Espaço Cultural 508 Sul. Diariamente, de 9h às 21h.

 

Fonte: Correio Braziliense

Data 31/12/2010

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