História da Arte |
Mulheres fazendo história no grafite
Flávia Mattar
Há dois anos, três jovens mulheres do Rio de Janeiro resolveram dar início a um grupo feminino de grafite, TPM crew. O grupo ainda está buscando a sua identidade visual e se firmando, ao mesmo tempo em que, juntamente com outras crew [grupo] femininas, tem trabalhado no sentido da formação de uma rede nacional com o objetivo de mapear a presença das mulheres na atividade, bem como fortalecer a sua atuação nessa arte. Em entrevista, uma das fundadoras da TPM crew, a estudante de psicologia, Marcela Zaroni, também conhecida como Prima Donna, aborda o universo do grafite e a presença da mulher nesse espaço, entre outros assuntos.
IbaseNet - Por que tem o apelido Prima Donna?
Prima Donna - É um costume nós termos apelido no hip hop. Surgiu de uma brincadeira, de prima da Madona. Além de ser branquinha, tenho uma pinta e tal. Mas foi uma brincadeira que deu certo, porque prima donna em italiano significa uma mulher emancipada, líder. Eu gosto também da idéia de prima, me sinto prima de algumas pessoas do hip hop, alguns amigos meus, compartilhando algumas coisas, e dona porque sou dona de mim mesma, do meu corpo.
IbaseNet - Como surgiu seu interesse pelo grafite?
Prima Donna - Eu trabalho com arte há muito tempo, desde pequena sempre desenhei, mas me identifiquei muito com o grafite por ser uma arte pública. Tive contato com o grafite através de um trabalho que estava fazendo de militância num colégio, fazendo um debate sobre racismo e machismo com o coletivo feminista que eu fazia parte. O debate era com uma turma de grafiteiros e, por acaso, eu propus que eles desenhassem a respeito do tema do debate e eu desenhei junto. Aí veio o convite para eu participar de uma oficina e aceitei. Isso foi há dois anos, e estou aí até hoje. Me apaixonei pelo grafite.
IbaseNet - Foi na mesma época que surgiu a TPM crew?
Prima Donna - A TPM surgiu nessa época, há dois anos. A gente formou um grupo, que a gente chama de crew, com as meninas que estavam fazendo a oficina. Começou com um grupo de três, eu e mais duas meninas que hoje não estão pintando. Era um grupo de três que depois foi ganhando outra formação.
IbaseNet - Hoje vocês são quantas?
Prima Donna - Olha, não sei ao certo, são muitas meninas que estão pintando, colocando no muro TPM, só que algumas são mais ativas, outras são mais novas.
IbaseNet - Mas vocês nem sequer se conhecem?
Prima Donna - Nos conhecemos. A gente organizou um encontro que foi o 1° Encontro de Grafite Feminino do Rio de Janeiro. Tivemos o apoio de uma fotógrafa, ela ajudou a gente a organizar esse encontro, e deu supercerto. Vieram 13 meninas de várias partes do Rio. Pintamos uma muro na Lapa, do lado da Fundição Progresso [Centro do Rio]. Fizemos um debate sobre a participação feminina no grafite. Esse é um trabalho da TPM também.
IbaseNet - A idéia de criar a TPM surgiu da necessidade de fortalecer a participação feminina no grafite?
Prima Donna - A gente sabia que algumas meninas já tinham pintado, mas estavam agora meio paradas e a gente resolveu formar o primeiro grupo. Conhecíamos um grupo de São Paulo, por nome, Só calcinha, e a gente resolveu montar um aqui no Rio também. E claro, incentivando outras meninas a se envolver, a entrar na TPM, buscar crescer o movimento, a participação das mulheres dentro do grafite.
IbaseNet - E por que TPM?
Prima Donna - Porque TPM tem muita relação com a gente, com as mulheres. Segundo, porque pode significar transgressão pelas mulheres, todo poder às mulheres ou tô puta mesmo (risos).
IbaseNet - E o perfil das meninas que fazem parte da TPM?
Prima Donna - É bem variado, são meninas negras e brancas, da Zona Sul e Zona Norte, geralmente têm entre 15 e 23 anos, eu sou a mais velha, tenho 26. A gente está começando a se reunir agora para ser fortalecer como grupo, se organizar, mas ainda é tudo muito informal.
IbaseNet - O grafite de vocês têm uma mensagem especial? Vocês discutem antes de fazer o grafite?
Prima Donna - Ninguém faz uma pintura em um painel sem estar discutindo com as colegas que estão pintando junto, o grafite é assim. A gente ainda está encontrando uma forma de organizar os nossos trabalhos individuais para criar uma proposta coletiva, a gente ainda não está com isso muito estabelecido. Antes, a gente ficava dependendo dos garotos chamarem, de estar fazendo os nossos contatos, estar correndo atrás, agora não, temos o grupo que está se fortalecendo. Não que a gente não faça grafite com os garotos, a gente está participando de vários painéis mistos, mas é importante a gente estar unida.
IbaseNet - O discurso ainda não está muito afinado?
Prima Donna - A gente ainda está encontrando esse modo de colocar as idéias coletivamente. Por exemplo, a gente gosta muito de grafitar mulheres negras, crianças. Em eventos nas comunidades grafitamos muito crianças, bonequinhas. Nós somos capazes também de variar muito esse tema, mas a gente gosta muito de grafitar mulheres negras. As mulheres negras estão aí e são superguerreiras, é preciso dar visibilidade a isso. Sou de classe média. Sou branca. Mas sempre compreendi o porquê de haver resistência em relação a mim. Eu entendo. Eu tenho uma visão para além do ambiente em que vivo. Questiono o meu lugar de branca. Eu estou aberta para ser transformada, para ser questionada, para dar respostas também. Eu reconheço, me solidarizo, me sensibilizo etc.
IbaseNet - Imaginei que vocês fizessem grafite sozinhas também, não sabia que era sempre em grupo...
Prima Donna - Podemos. Se quiser ir para o muro hoje e fazer sozinha pode, depende da sua atitude. Tem gente que tem essa atitude de chegar no muro e fazer, outras ficam mais sem-graça.
IbaseNet - Existem pontos da cidade que chamam mais a atenção para grafitar ou isso não tem importância?
Prima Donna - Isso interfere sim. Gostamos dos lugares que são mais movimentados, que têm mais trânsito, que tornem o grafite bem visível. Mas isso não impede de a gente estar grafitando em outros locais. A gente grafita na favela, grafitou na Rocinha, na Gambá, fica no Complexo do Lins. Nesses casos, você não está fazendo o seu nome pros grafiteiros. Quando a gente faz isso na comunidade, pelo menos eu, não estou em busca disso, a gente está fazendo para a comunidade curtir, para ficar bonito o lugar, para passar uma mensagem política.
IbaseNet - Mas quando você grafita no asfalto você também está passando a sua mensagem, não é?
Prima Donna - Exatamente.
IbaseNet - Você falou que conhece um grupo de grafiteiras, em São Paulo. Existem outros?
Prima Donna - Existem. A gente tem conhecido através da Internet grafiteiras de outros estados e nessa história, eu e outras grafiteiras que já nos comunicávamos por e-mail, além de nos conhecermos pessoalmente, resolvermos montar um grupo no Yahoo. Estamos reunindo os e-mails de todas as meninas que sabemos que grafitam no Brasil, estamos discutindo sobre a nossa experiência individual, como foi o nosso percurso, se apresentando. E estamos tentando fazer um projeto juntas para ir ao Fórum Social Mundial. Queremos fazer um debate e um painel. A gente ainda está discutindo se vai ser dentro do acampamento ou se será em outro espaço, em um evento de hip hop.
IbaseNet - Mas além da TPM e do Só Calcinha, tem outras crew?
Prima Donna - Tem em Porto Alegre, as Tikas crew. Em Brasília está sendo formado uma agora, SD crew. Em Porto Alegre, a Nina é uma das meninas que é superativa, as meninas são muito espertas, já fazem eventos de grafite, participam de debates, são militantes mesmo.
IbaseNet - A presença da mulher no universo do grafite é recente?
Prima Donna - Não. O que a gente observa é que são poucas, em um universo de 50 homens, deve haver 1 mulher. Mas não é recente, antes de eu começar a pintar, já havia a Dani e a Clara, que começaram antes. Mas elas começaram mais ou menos na mesma época que os meninos, que a Nação crew começou, que é um grupo superforte hoje no Rio. Se o hip hop surgiu na década de 80, na década de 90 chegou aqui no Brasil, deve ter havido meninas que se envolveram, mas ficaram no gueto, a gente não ficou sabendo o nome delas. Só com uma pesquisa mesmo para saber ao certo.
IbaseNet - Não há como saber ao certo quantas mulheres grafitam no Brasil, não é?
Prima Donna - Até agora, a gente só conseguiu mapear 30, mas devem ser bem mais. A gente está fazendo uma pesquisa desses nomes, dessas pessoas.
IbaseNet - Vocês têm a intenção de formar uma rede de grafiteiras em âmbito nacional?
Prima Donna - Essa rede já está se formando. Todas as meninas que estão ativas na lista estão com a intenção de criar uma rede, a gente está ficando empolgada com a possibilidade de estar se encontrando, fazendo painéis juntas. Estamos vendo que existem coisas muito semelhantes lá e aqui, como o machismo, por exemplo, que é muito sutil no hip hop. É sutil, funciona de uma forma muito interessante, você acha que não está acontecendo, mas está.
IbaseNet - Pode dar um exemplo?
Prima Donna - Por exemplo, já ouvi meninas reclamando, inclusive de outros estados, sobre a questão dos painéis. Quando você faz um painel, tem que dividir o espaço, o material também. Você pode até chegar com material próprio, mas o espaço precisa ser dividido. Como dividir? Nessa história de como dividir, elas se sentem meio excluídas, é o relato. A gente reproduz isso mesmo, é cultural.
IbaseNet - Fora isso, como é a relação dos grafiteiros com as grafiteiras?
Prima Donna - O que acontece é o seguinte, existem os aliados. Você vai encontrar meninos que estão superinteressados nesse movimento das mulheres dentro do grafite, estão superfelizes, incentivaram desde o início essa história. É claro as pessoas caem em contradição no dia-a-dia. E tem os babacas, aqueles que não têm essa consciência política, estão se sentindo ameaçados, com medo de perder espaço.
IbaseNet - Existe diferença grande nos grafites feito por meninos e nos feitos por meninas ou isso é besteira, vai de pessoa para pessoa?
Prima Donna - Hoje têm muitos rapazes pintando mulheres e a gente pinta muitas mulheres, mas eu já pintei homens no muro. Por exemplo, tenho uma pintura na frente do Maracanã que é um rosto com uma arma saindo da cabeça, a idéia não é incentivar o militarismo, a idéia é dizer que a mente é uma arma, mente engatilhada. Saindo dessa arma, está escrito 'viva la revolución'. As pessoas podem associar a um grafite masculino. Hoje, ele está meio destruído, rasparam os olhos. É público, né?
IbaseNet - Você considera grafite uma arte?
Prima Donna - Eu considero.
IbaseNet - O grafite não é uma arte permitida legalmente, ou é?
Prima Donna - Mais ou menos, às vezes a gente pinta em lugares não-autorizados.
IbaseNet - Tem isso de lugar autorizado e não-autorizado?
Prima Donna - Tem, às vezes a gente está fazendo um evento, fica combinado que vamos pintar aquele muro. Se o grafiteiro quiser pichar o muro de uma escola, por exemplo, ele pode conversar com a diretora, pedir autorização. Tudo depende do grafiteiro. Mas na maioria das vezes, a gente não pede autorização. De qualquer forma, o grafite não é mal-aceito, na minha opinião, posso estar sendo muito ingênua, não sei se é aqui no Rio, não sei se é porque eu sou uma mulher pintando um muro, e nesse âmbito, o preconceito é menor. Por exemplo, um rapaz pintando um muro é mais associado a um pichador.
IbaseNet - Ainda existe essa confusão, não é mesmo?
Prima Donna - Tem, até porque o grafite é a evolução da pichação. A assinatura de um desenho é o seu nome, que é a pichação entre aspas. Mas isso é uma longa discussão. Têm muitas coisas semelhantes, mas têm muitas diferenças também. O grafiteiro tem uma preocupação estética, ele quer usar cor, perspectiva, é um trabalho artístico.
IbaseNet - E a relação com a polícia, como é?
Prima Donna - Nunca tive problemas com a polícia, inclusive já houve uma ocasião em que a TPM estava pintando o muro de um colégio municipal e os guardas municipais vieram conversar com a gente. Mas eles não foram agressivos, eles só conversaram, foram tranqüilos, pediram para a gente pegar autorização com a diretora. Nós fomos, a diretora não autorizou e a gente não terminou o grafite naquele dia. Ela até falou para a gente pintar no final de semana, para não pintar enquanto eles estivessem ali. De qualquer forma, a diretora não gosta do trabalho de grafite, e olha que o muro está lindo.
IbaseNet - Você nunca teve problema com a polícia, mas o Acme (grafiteiro) já foi preso, não foi?
Prima Donna - Foi, mas só ele para contar a história, não sei contar direito. Mas é o que estou falando, acho que a repressão com as mulheres é menor, tenho essa impressão.
IbaseNet - Mas além da possibilidade de repressão da polícia, tem alguns outros obstáculos que um grafiteiro ou uma grafiteira enfrentam?
Prima Donna - Olha, já me roubaram uma lata na rua. Foi um grupo de mulheres que me levou a lata. Eu não sei, acho que eram meninas de rua, por volta de 16, 17 anos. Elas me pediram uma lata, eu estava grafitando com dois garotos de 15 anos, ali na Praça da Bandeira [Zona Norte do Rio], e elas passaram. Eu falei para elas buscarem no final, aí uma delas pegou a lata e foi embora. Foi uma coisa inesperada, não sabia como reagir, elas levaram a lata e eu não quis criar confusão.
IbaseNet - E as latas são caras, não é? Para se fazer um grafite gasta-se um bom dinheiro, não é mesmo?
Prima Donna - Cada uma custa R$ 9. E aquela ali foi comprada do meu bolso.
IbaseNet - Por que? Você consegue sem ter que pagar por elas?
Prima Donna - A gente consegue em eventos, as pessoas costumam dar.
IbaseNet - Existe alguma proposta de tornar o grafite uma arte urbana reconhecida? Ou o legal é ser marginal?
Prima Donna - Marginal nunca vai deixar de ser porque o grafite está na rua e arte na rua sempre vai ter um aspecto que vai depender daquela marginalidade no sentido de enfrentamento, de não ter medo de colocar a sua idéia, livre de qualquer coisa, contra-hegemônico. Mas estamos buscando o reconhecimento, sem dúvida, têm grafiteiros que estão pintando telas. Uma coisa não exclui a outra, mas é preciso ter esse movimento de intervenção urbana, até porque arte pública tem muitas diferenças em relação à arte privada.
IbaseNet - Você pode citar algumas?
Prima Donna - A arte pública é mais popular, ela está ali para o povo, para as pessoas verem, ela está sujeita também à interferência da rua. Quando a pessoa pinta uma tela, normalmente está em um ateliê, em um espaço fechado, pintando sozinha ou com mais um amigo, é uma coisa meio individualista. Na arte de rua, você está dividindo aquela experiência com outras pessoas, está sendo observado, as pessoas interferem no seu trabalho. Às vezes, a gente está pintando e chega uma pessoa e diz "nossa como está bonito, se você jogar uma luz ali vai ficar legal".
IbaseNet - O grafite é um dos elementos do movimento hip hop. Que papel o grafite tem nesse movimento?
Prima Donna - Expressar a linguagem visual. Há uma interação grande, o tempo todo, entre os elementos. Têm grafiteiros que cantam rap ou a gente pinta dentro de um show. A interação é muito grande.
IbaseNet - Você tem envolvimento com outros elementos do hip hop?
Prima Donna - Tenho. Tenho com o ZN Máfia, uma posse, que significa um coletivo maior ainda que uma crew. Uma posse pode envolver pessoas de vários estilos, elementos, pode ter rap, grafite, DJ, produtor. Canto rap também, mas bem menos... Eu não me dedico ao rap. Eu me dedico ao grafite. Gosto muito do rap, escrevo uma letra, já cantei em show, mas não dou muito asas, não.
IbaseNet - Tem havido uma polêmica sobre se o rap estaria se vendendo, se rendendo ao sistema. O que você pensa sobre isso?
Prima Donna - Realmente existe o risco disso acontecer, mas acho que sempre vai haver um movimento de resistência, de transgressão, de não-aceitação dessa imposição. Todo mundo quer o seu trabalho reconhecido, quer vender o seu trabalho, quer que ouçam aquela letra e reflitam sobre ela. Tem muitos rappers que fazem um trabalho social, de resistência, enfrentam várias dificuldades para sobreviver... Estão aí, resistindo mesmo. Existem as pessoas que estão se vendendo, mas também têm aquelas que encontram o meio termo.
IbaseNet - No grafite não há muito como acontecer isso, né?
Prima Donna - Tem. Por exemplo, um desenho nosso pode servir para ilustrar uma propaganda ou podemos ser convidados para trabalhar na parte de design de algum projeto. Você pode estar fazendo uma oficina, um trabalho de base e, ao mesmo tempo, estar sobrevivendo com a sua arte.
IbaseNet - Para ser grafiteira tem que ser militante?
Prima Donna - Não necessariamente. Você pode ser apenas um artista. Mas acho que acaba sendo militante, a partir do momento que vai para a favela dar uma oficina na comunidade, ensinando outras crianças, pessoas. Também passando uma mensagem...
IbaseNet - Você tem vontade de se profissionalizar?
Prima Donna - Tenho vontade de atingir uma excelência, uma qualidade no meu trabalho, e que eu possa passar isso adiante, ensinar. Eu ainda estou aprendendo. A técnica do spray é supercomplexa. Eu também estou encontrando um estilo de desenho, de forma, de cor.
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