História da Arte |
ingularização e de cópia, a condição da pintura enquanto original e da impressão enquanto reprodução são algumas das questões que permeiam a produção recente de Julio Ghiorzi. Em primeiro lugar, o artista realiza em seu atelier uma pintura. Uma pintura única e original que irá funcionar como matriz. A matriz pictórica servirá como meio para a realização de uma única impressão, resultando na cópia de uma determinada forma. Eis aqui o primeiro raciocínio do artista em relação à produção artística e aos problemas da história da representação visual: o da mimese. ,A imagem gerada por impressão funciona como similar à imagem pintada. Daqui resulta uma cópia não fidedigna do original, produzindo imediatamente uma metamorfose da primeira forma: a forma da pintura sem metamorfoseia em forma da impressão, diferindo imageticamente - no resultado - mas resultando de uma mesma origem formal. A cópia impressa resulta desta compressão de uma superfície plana sobre outra superfície plana, da matriz à cópia. Nada mais arcaico. Nada mais simples. Assemelhando-se aos processos de tingimento, aos processos de registro imagético das culturas pré-históricas ou, no mínimo, ao mundo das cópias pré-gravação.
Logo em seguida, complexificando a operação, Ghiorzi retorna à imagem original, à matriz, ao lugar de origem do modelo formal. E aqui, por pintura, procura reproduzir a metamorfose gerada no processo da impressão. O artista copia a sua própria cópia. Copia ou quem sabe realiza um espelhamento, uma simulação, um jogo que lembre o trompe l'oeil, a própria enganação do olhar por contigüidade e por semelhança. Neste jogo, temos a gemelaridade: as pinturas gêmeas. Iguais e diferentes. Estas gêmeas idênticas resultaram de processos distintos em ternos de técnicas e de métodos - uma é filha da pintura, a outra é filha da gravura. E, com elas, as pinturas, caminham o artifício artístico de fazer desaparecer o original para instaurar no seu lugar imagens duplicadas, para as quais o enigma se assemelha a perguntar: quem nasceu primeiro? Qual das imagens?
A pergunta da gênese não está aqui para ser respondida. Ela foi posta e já nasceu para ser deslocada: a geração da segunda imagem é gradualmente (quantitativamente) equivalente à primeira, não variando numericamente em relação à sua matriz, mas possui um alto grau de variação qualitativa, assemelhando a um princípio mutacional entre uma geração e outra. Da primeira à segunda imagem, simplesmente, a cópia sofre suas falhas e se abre a uma reprodução técnica que mantém um espaço aberto para as diferenças. Esta reflexão artística parece estar a nos dizer, em termos simbólicos, que o pai-mãe é feito agora à imagem e semelhança do filho. Ou que, ao caminhar na direção inversa, voltando à primeira imagem, este sentido genético da criação se perde e o que acaba por ser reconhecido é mais uma horizontalidade, uma linha de trânsito entre uma imagem e outra, uma linha de conexão, como entre os gêmeos.
Assim, no campo das imagens e, mais especificamente, no campo das imagens artísticas, o que importaria na atualidade não são as condições de (re) produção, pois as diferenças estruturais são geralmente mínimas. A arte retoma sua "vocação de raciocínio formal", "visual e plástico", neste conjunto de obras, para nos dizer que as diferenças relevantes são sempre as de caráter qualitativo, dependentes, portanto, de mínimas zonas de diferenciação - zonas topográficas na superfície de uma tela, por exemplo.
II
Pinturas gêmeas, como as gosta de denominar o próprio artista, nos permitem identificar um processo particular de produção das imagens em nossa cultura. Em geral, quando falamos de "nossa civilização das imagens", estamos quase sempre nos referindo a uma linha de evolução histórica que propugna uma geometrização e uma simplificação das formas por meio das imagens, começando nas fotografias e chegando às imagens de síntese. A geometrização / simplificação / matematização das formas, através da pintura, não se dá de modo linear. E esta relação passa justamente pelos tratamentos dados, na pintura, ao problema de como representar - tratar geometricamente e simbolicamente - itens a serem pintados tais como, nuvens, a fumaça de um fogo, as manchas numa pele, um vento. Como posso pensar estes elementos sem faze-los passar pelo desenho? Como escapar às artimanhas da descrição e dos conceitos advindos da cultura do desenho?
Aqui, assistimos a uma reflexão densa, sintética e, acima de tudo, pictórica sobre esta condição. Ghiorzi não abdica da tradição geométrica e de sua forma de produzir as imagens. E pretende dar continuidade a uma outra tradição de raciocínio, de matriz eminentemente visual - que quer nos fazer ver para pensar, ou antes, ver para depois discursar, narrar. É um paradigma do visível enquanto um inteligível. Para pensarmos a presença destas duas operações - feitas aqui gêmeas, pela contigüidade proposta pelo pintor - no interior desta mostra cunhei o termo "pintura inventariada" como sendo o complementar de "pintura de sensação".
Na "pintura inventariada", o artista toma a imagem como podendo ser decomponível - aos moldes dos pixels -, resultando daí uma codificação abrangente que trate de notações tais como cor, nuance e brilho. Esta imagem decomposta nos restitui a forma, mas não pode nos devolver a imagem particular e, portanto, quando falamos da forma estamos dizendo, uma forma matematicamente transformável em visível, mas não a forma inicial. Na atualidade, nossas percepções estão preparadas para aceitar estas imagens, como aproximações muito detalhadas. Assim, vemos televisão, lemos na tela do computador. Tudo numa estruturação desenhável, codificável. Estes meios nos permite a análise das formas e das imagens, sua recondução para outros suportes e até mesmo sua guarda enquanto uma memória digital do mundo. Estes meios permitem aperfeiçoar, cada vez mais, os cálculos e os tratamentos e também os modos da representação visual.
Mas, em se tratando de pintura, devemos pensar em problemas arcaicos, em resíduos, em formas e suas metamorfoses. O raciocínio qualitativo nos permite sair da hegemonia da visão analítica e reducionista da imagem, que trata toda a imagem a partir deste ideal historicista acima enunciado e que evolui a partir da fotografia (Jeremy Gilbert-Rolfe). A pintura inventariada, em grande parte, destrói o mundo das formas e morfogêneses. O inventário resolve os problemas de codificação e, em última instância, às questões da semiose das obras de arte. A análise formal é mais grosseira, diria René Thom, matemático e teórico das catástrofes, mas tem a vantagem de ser mais abrangente. Voltar a problemas mais abrangentes mais do que a operações de síntese codificadas é a tônica deste raciocínio em torno das pinturas gêmeas e suas operações.
O espectador é convidado a tratar de jogos de correspondências entre as morfologias propostas e entre as topologias alcançadas, ou seja, é convidado a observar ambas as pinturas irmãs como sendo um jogo de "encontre os erros", ou, "ache as semelhanças", ou ainda, "veja cada uma das zonas deste quadro e compare-as". São apenas equivalências visíveis entre elementos e entre os lugares nos quais eles se encontram na superfície da tela. Apenas? As imagens produzidas nestas pinturas gêmeas podem ser pensadas como sendo verdadeiras peças da homologia formal, de um jogo de equivalências de formas e de lugares nas telas, mas que resultam de um gesto artístico único - o do artista - e de duas operações e de feituras distintas - a da pintura e a da gravura. Quando olhamos para elas, as imagens irmãs, as diferenças qualitativas vão se hiper-dimensionando. Elas ganham o assombro e o espanto que o jogo infantil de "diferenças e semelhanças" não pode conduzir. As equivalências funcionam por excessos - quando uma mancha se expande em superfície, em brilho, em cor, por exemplo - ou por faltas - algo que desaparece sutilmente de uma imagem a outra ou que se reduz em ocupação de espaço. Mas para saber disso, temos que prestar atenção à superfície pictórica e à topologia-topografia desta superfície.
Desse modo, Ghiorzi se propõe a seguir na linha dos artistas que ainda querem pensar a pintura, em sua relativa autonomia, enquanto um sistema dinâmico, uma topologia em toda a sua descritividade, tornando-a - e as imagens que dela decorrem - irredutível aos modos da quantificação e às formas atuais da pintura de inventário. O inventário existe no interior desta pintura. Mas ele não toma o lugar principal da cena. Pelo contrário, ele se recolhe à sua condição técnica e não é visto como a exemplaridade do tratamento da imagem em nosso sistema cultural contemporâneo. Ele está asfixiado, aprisionado, histericamente conduzido - no dizer de Gilles Deleuze -, por uma pintura de sensação e um tratamento da imagem que parte de outra linha de temporalidade e de um conceito de visível que ressalta as particularidades da imagem visual e artística e seu poder de impacto sobre o sensível.
Assim, posso afirmar que estas pinturas são preponderantemente pinturas de sensação. Pois quando Ghiorzi repete a cópia no original, apagando a matriz por assim dizer, toda a linha da história que é traçada a partir da fotografia - e de teóricos como Walter Benjamin - é também apagada. O que está sendo operado aqui é um apagamento mesmo, um procedimento de descodificação e de reaparição de um raciocínio privilegiadamente sensorial - de algo que deve sempre e primeiro ser visto e experimentado, sem necessariamente passar pelo codificado, mantendo-se na zona do que não pode ser dito. O artista destitui a força investida nas cópias e na sua reflexão e volta-se para uma resistência pura do mundo figural.
Este mundo figural, do qual já conhecemos outras séries, não quer apenas evocar figurações e estilos do passado. Tampouco se pôs na esteira de reflexões sobre o pós-modernismo e suas manifestações paródicas. Não. Muito antes pelo contrário, o repertório de suas figuras lhe serve fundamentalmente para manter-se no interior do campo matérico da pintura e cada vez mais adentrar neste espaço de sagração de uma forma de arte, através de estratégias de pintor. Ele usa as figuras como verdadeiros disfarces para burlar e desviar o espectador daquilo que lhe espera no momento seguinte, para conseguir deste uma identificação inicial que o conduza ao êxtase e à comoção para logo em seguida lhe dar o horror da imagem. Esta consciência do exercício decorativo presente em toda grande pintura deve ser capaz de gerar risos surdos. As figuras emocionalmente carregadas são, de algum modo, familiares ao imaginário do seu espectador, traduzindo-se inicialmente em luxo e exuberância, seja do humano, seja da paisagem, seja de mundos animais, plantas-baixas e outras formas presentes em seu repertório. Esta apropriação de uma estética canônica popularmente aceita lembra o pós-modernismo, mas é também uma presença comum nos jogos da dinâmica das culturas, em especial da cultura brasileira, remetendo à estética barroca circulante no universo colonial e aos elementos da cultura romântica das paisagens do Império. Imagens identificatórias, de luxo e saudades de um não-vivido. Mas que não param por aí. E eis o engodo, eis o mal-estar. A decoração presente no repertório é, como diríamos, a própria operação do pathos, da lógica sensorial presente nestas pinturas. O artista agrada, convence, nos aproxima de suas obras pelos sentidos, por meio de vagas lembranças imagéticas, por sensações de luxo e de melancolia, por identificação com imagens de poder e, depois de nos ter instalado no interior desta fruição, duplica suas imagens, nos deixando diante da impossibilidade de inventariar as nossas próprias imagens do mundo. Portanto, ao final, nos vemos liberados de alguns artifícios - de conjuntos conceituais e de representações estáveis, por exemplo - e somos levados a acompanhar o "esforço atlético desta pintura".
Por Marcio Pizarro Noronha
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