História da Arte |
Poesia e atmosfera oriental na
gravura abstrata de Fayga Ostrower
Maria Luisa Luz Tavora
Obs.: As ilustrações mencionadas pela autora não constam desta página.
Não são poucos aqueles que, através das gravuras de Fayga Ostrower são seduzidos e capturados pelo mistério de formas que ressoam um longínquo oriente. É comum a referência a uma atmosfera oriental que emana da imagens "fayquianas".
Iniciamos nosso trabalho com o registro de algumas dessas referências:
"Em alguns trabalhos posso visualizar ligações sobretudo por paralelismos, com formas de arte chinesa, facilitados pelo exercício das transparências da cor e pelo uso do papel de arroz ," afirma Mário Barata.
"Caberia compará-la ainda à poesia do Extremo-Oriente - China e Japão - com cujas artes a de Fayga revela grandes afinidades ," declara Jayme Maurício.
"... na força e fluidez dessa poética que continua a fundamentar-se no silêncio das antigas paisagens orientais, entre nuanças e exatidão ," revela Roberto Pontual.
"... até quando os ritmos de composição parecem constituir-se em arabescos e sugestões orientais (certas incisões poderiam fazer pensar na delicadeza de Tchou-la, o magnífico pintor chinês do séc XVII) ," diz Araújo Netto.
O clima de leveza e espiritualidade permeia toda a fase abstrata da gravura de Fayga Ostrower, que se inicia em 1954.
Mesmo em sua fase figurativa, defrontamo-nos com cenas de um recluso lirismo pronto a desabrochar em plenitude, num momento posterior.
Na fase da abstração expressiva, encontramos em sua gravura similitudes com a estética da pintura chinesa, quer pela suavidade das cores, quer pela delicadeza dos traçados ou ainda pelas cores em transparência. A gravura abstrata de Fayga, poesia construída, afina-se com o tratamento dado à pintura chinesa. São dois caminhos distintos, bem sabemos: a figuração oriental e a abstração "fayguina". Sem abdicar da figura, a pintura chinesa encontra na sua função, o meio adequado para aprofundar significados. A figura circula nos limites de uma revelação. Pensamos que, como revelação também se dá a gravura Fayga. As cores e formas se apoiam num pensamento que as estruturas para a obtenção de equilíbrios, ressonâncias do equilíbrio primordial cósmico. Ambas buscam a verdade na harmonia.
Os comentários dos críticos, aqui apresentados, dão conta de afinidades que não escapam ao olhar ocidental, familiarizado com a beleza das estampas japonesas e chinesas com as quais passou a se relacionar mais intensamente desde o final do século passado.
Observando-se as gravuras de Fayga (Fig. 1 e 2) torna-se difícil imaginar que essas imagens tenham nascido de uma dispersão ou de uma impulsividade efusiva. Percebe-se que brotaram de um silêncio no qual as formas aguardaram pacientemente o momento de colaborarem na construção e revelação de uma imagem de natureza poética. Não há traço que tenha surgido de uma hesitação. "A poesia, diz Bachelard, tem necessidade de um prelúdio de silêncio , silêncio que é parceiro da espiritualidade, fruto da meditação gerada pela disciplina monástica.
Tal qual as hastes firmes e flexíveis de um bambú, as incisões provocadas por Fayga, na madeira, ecoam no papel manifestando força e firmeza. Como numa caligrafia oriental, os traços assumem um poder de evocação, determinam ritmos que se harmonizam com algo que sentimos existir em nós e além de nós - o ritmo vital. Esse sentido de revelação, de desvendamento aproxima verdadeiramente a gravura de Fayga da arte oriental.
No Oriente, a pintura se fundamenta numa filosofia que se propõe concepções precisas sobre o destino do homem e sua relação com o Universo. O ritmo da vida humana está em concordância com o da Natureza. A produção pictórica oriental é medida por uma concepção organicista do Universo. Para os chineses, por exemplo, o Universo contém uma ordem moral - o TAO. A pintura chinesa, entendida como prática sagrada, visa criar uma imagem reveladora dessa ordem do mundo. Inspirada no Taoismo, a estética chinesa interessa-se pela arte como objeto de contemplação. Contemplação como processo em que o fruidor dispõe-se à obra e aprofunda na meditação a revelação que esta lhe faz. Contemplação entendida como experiência poética de mudança de natureza ou de regresso à nossa natureza original.
As palavras de Fayga explicando sua concepção de arte, ajudam-nos em nossas reflexões: "A idéia que quero passar é sempre a de que a arte é uma forma de enriquecimento espiritual. Se as pessoas forem sensíveis, não importa sua formação ou origem, a arte pode mudar muito as suas vidas... a arte é uma forma de crescimento para a liberdade, um caminho de vida"
Sua afirmação não se distancia muito da maneira pela qual François Cheng, estudioso da arte oriental percebe a pintura chinesa: " Enquanto prática desta filosofia (taoísmo), a pintura representa uma maneira específica de viver. Ela visa criar mais que um quadro de representação, um lugar mediúnico onde a verdadeira vida é possível. Na China, a arte e a arte da vida constituem uma mesma coisa" .
A pintura chinesa constitui um microcosmo total. Através de ritmos estruturais busca manifestar o princípio do TAO - ritmo original, que provém da combinação cíclica de dois ritmos, de dois pólos vitais, o Yin ( A Terra, o orgânico) e o Yang (O Céu, o inorgânico) que constituem o domínio do Pleno.
Ligada à noção de In - Yang e tão importante quanto esta, os chineses prendem-se à noção do Vazio. A idéia do Vazio vem sendo tratada pela filosofia oriental desde a obra inicial do pensamento chinês, o Livro das Mutações, ao qual se ligam as principais correntes do pensamento oriental, entre elas o Taoismo, que outorgou ao Vazio uma posição privilegiada no centro de seu sistema.
O Vazio então passa a constituir o terceiro termo da relação cósmica. A ele é devido o funcionamento do Yin-Yang, pois nele está presente a Energia Primeira, o Sopro Primordial. "O Vazio é o lugar funcional, onde se opera a transformação, explica Cheng. A existência do Vazio nesta relação cósmica permite que o Yin e o Yang não se polarizem criando um domínio estático, mas animem o Universo assegurando-lhe eficácia e unidade.
Dentro deste Universo, o homem como ser especial reúne em si Yin e o Yang e possui também o Vazio. Isto explica a possibilidade de sua comunhão com o Universo. François Cheng, em seus estudos sobre o assunto, define a importância do Vazio na estrutura do pensamento oriental afirmando: "Pelo Vazio, o coração do Homem pode tornar-se a regra ou espelho de si mesmo e do mundo, pois possuindo o Vazio e se identificando ao Vazio Original, o Homem se encontra na fonte das imagens e das formas. Ele capta o ritmo do Espaço e do Tempo: ele governa a lei da transformação" .
Neste processo de identificação, volvendo-se para seu coração não estaria o homem atendendo a "necessidade interior" da qual nos fala Kandinsky? Movendo-se por um ritmo próprio através de uma crescente espiritualidade, o homem atinge uma justa visão da vida. No mergulho em direção a si mesmo o homem recolhe e estrutura sua visão do mundo. Este mergulho brota do silêncio que não é esterilidade, mas latência. Identificando-se com o Vazio, o silêncio é lugar dinâmico no qual as transformações são provocadas.
Para os chineses, o Vazio é encarado como princípio de base da arte, pois é através dela que se dá sua manifestação mais completa.
No primeiro cânone da pintura chinesa, proposto por Hsieh Ho, o artista é orientado, para em seu trabalho, engendrar e animar o sopro rítmico. Esta animação precisa estar em acordo com a relação essencial do Universo, a relação que se efetiva na alternância do Yin (Céu) e do Yang (Terra).
O artista chinês converte plasticamente esta relação ao jogo do cheio-vazio ao qual se entrega. Neste jogo mantém uma certa fidelidade à proporção que a filosofia oriental ensina estar contida no Universo: - A Terra representa um terço e o Céu dois terços da totalidade cósmica. O cheio e o vazio da pintura chinesa implicam assim numa relação anterior, do Universo.
Observemos às gravuras Fayga ( Fig. 3, 4, 5, 6) à luz das reflexões do crítico que falando da poética da artista aponta para o fato desta fundamentar-se no silêncio das antigas paisagens orientais...." . ( o grifo é nosso).
Essas gravuras nos oferecem um espaço de respiração , do calar, do silêncio propício à gênese poética. Numa proporção que se aproxima da regra chinesa, grandes superfícies apaziguadas por cores baixas testemunham a transmutação de formas. Não há oposição rígida pois as formas, os traços são mediados por um vazio que não se reduz a um "espaço entre" mas se articula como fonte positiva de tensão. Há descanso do traço que reaparece repetidas vezes determinando um movimento visual (Fig. 5, 3, 1,). Nesse descanso vislumbramos a cumplicidade do vazio para a plenitude da forma.
Estamos diante de uma noção importante que a pintura chinesa cultiva: a do Yin-hsien, o inivisível-visível". Aplicada mais diretamente à pintura paisagística, a noção se traduz pela interrupção do traço. Com este procedimento técnico, explica François Cheng, o artista "deve cultivar a arte de não mostrar tudo, a fim de manter vivo o sopro e intacto o mistério" .
Profundamente enraizada na estética da caligrafia, a pintura chinesa exige para sua realização uma sólida orientação na técnica das pinceladas. O artista aprende, a partir de minuciosa observação da natureza, os múltiplos traços que traduzem os vários seres e coisas. Após muito treino e meditação está o artista pronto para pintar. Esta disciplina faz as pinturas chinesas serem fruto de uma execução espontânea e rítmica, levando o seu autor a abordar as coisas por seus traços essenciais, tal qual nos ideogramas.
Nas gravuras (Fig. 1,2,3,4,5) testemunhamos a aplicação da noção de "invisível-visível" . Os traços funcionam graças ao Vazio que os atravessa nas interrupções. Nas gravuras (Fig. 2 e 3) o Vazio contribui para prolongar e expandir os traços determinando os ecos da incisão.
Há uma precisão no corte como se o toque na madeira tivesse sido instantâneo, uma intervenção mágica.
A estética chinesa, na ânsia de encontrar uma perfeita correspondência entre a arte de pintar e a arte da vida, classifica determinados traços. Há dois traços básicos: o Kan-pi e o Fei-pai.
O "Kan-pi" (pincel seco) é obtido com o pincel levemente embebido de tinta a fim de que o resultado oscile "entre presença e ausência, entre substância e espírito, criando uma impressão de discreta harmonia com impregnado do Vazio" .
A gravura 6104 (Fig. 4) é rica de traços oscilantes. Superpõem-se às formas espessas, tênues traços. Ora o traço é forma, ora encarna ritmos lineares.
O "Fei-pai" (branco voante) constitui outro traço cultivado pela pintura chinesa. Este resulta de um pincel cujos pelos estão dispostos distanciados com intervalos a fim de comportar no traçado o branco. A imagem poética pretendida é um traço vazado pelo Sopro.
Observamos as gravuras (Fig. 1 e 5). As formas com uma superfície mais extensa além de abrigarem as nervuras da madeira que se insinuam, contém incisões que nos remetem ao traço chinês "Fei-pai". Surgem intervalos irregulares, descontínuos como os sopros vitais. Na pintura chinesa as tensões são estudadas através da técnica da pincelada. Em Fayga, as intervenções descontínuas, as superfícies oscilantes em seus contornos regulam também a tensão de suas composições. Nos procedimentos técnicos de execução dos traços e das formas, Fayga afina-se com processo oriental de execução da pintura.
A ação de gravar em Fayga apresenta-se como algo muito natural. Essa naturalidade se explica em parte pelo alto nível de domínio técnico que conquistou. Tem-se a sensação de que a imagem surgiu sem esforço, brotou naturalmente. O pensamento estético chinês proclama que a obra para ser verdadeira precisa comunicar a ausência de esforço em sua execução.
Nas gravuras de Fayga, (Fig. 5 e 7) a estrutura compositiva revela simplicidade que emana de uma silenciosa harmonia. A leveza das composições que dissimula o esforço tem sua origem no equilíbrio orgânico que Fayga empresta às suas imagens. Há uma certa assimetria, também encontrada nas pinturas chinesas. A Natureza se equilibra e os mistérios deste seu processo continuamente surpreendem o homem ocidental que dela se distancia ao estabelecer como "a priori" do equilíbrio as proporções matemáticas.
Fayga lança à direita da composição (Fig. 7) um traço semelhante ao "Kan-pi" chinês equilibrando a imagem pois no seu percurso este vai dialogando com todos os outros elementos da composição. Ele enfrenta, atravessa e se prolonga pelas três grandes áreas em que se divide a composição, assegurando integridade ao conjunto. Este traço reivindica para si o movimento do qual as outras se tornam repercussão.
Em outra gravura (Fig. 8) Fayga trabalha quase na monocromia, com tons terrosos. A composição vê-se invadida à esquerda por um vigoroso traço marrom, reminescente traço expressionista que vem habitar o tempo lírico que envolve a atualidade da artista. Vívido, intenso, o traço acentua a assimetria do conjunto que dele faz eixo para se afastar, permintindo um crescente vazio que jorra do centro. O vazio invade os traços e formas fazendo-os vibrar. O silêncio da poesia encontra a solidariedade nesse vazio. Confirmam-se na gravura de Fayga as palavras do crítico com as quais iniciamos nossa abordagem: "... caberia compará-la ainda à poesia do Extremo-Oriente...".
Quando os chineses empreendem e se concentram nos estudos dos traços assim o fazem pois desejam captar das coisas e dos seres suas linhas internas, seus traços essenciais. Despreocupam-se em reproduzir as formas mensuráveis dos objetos visíveis. Assim procedendo, acreditam captar melhor certos atributos dos objetos que revelam em sua pintura. Cultivam para a alta consecução de uma obra, as qualidades fisionômicas dos seres e coisas. Assim, seus traços manifestam com grande precisão a alegria ou a tristeza, peso ou leveza, a força ou a fragilidade, aquilo que não tem forma mas constitui essência do objeto ou do ser.
Em Fayga (Fig. 6,9,10), os elementos da composição articulados sob a ação de depurada sensibilidade, num coro uníssono cantam para nós a paz, a leveza, o descanso, a delicadeza, a solidariedade. A gravadora, tal qual um artista oriental, encontra o vocabulário preciso para evocar e comunicar o TAO, apaziguando os conflitos.
Os artistas da abstração sensível, estranhando os princípios de uma arte também abstrata mas imersa numa geometria, trilham um caminho que guarda, em princípio, similitudes com a proposta do artista oriental - busca do ser primordial através do mergulho no seu interior. A busca da dimensão da vida não seria possível através da solidez do pensamento matemático.
Fayga participa desse processo do artista ocidental de resgatar para a arte o nível poético. Não é sem razão que sobre a arte chinesa comenta: "Admiro neles essa combinação de força vital com a poesia" .
Muitos artistas "informais" procuraram conscientemente introduzir-se no pensamento oriental. Fayga chega a ele pela intuição, pela refinada sensibilidade com a qual foi agraciada pelos deuses.
A relação orgânica com o mundo revitalizada na arte pelos artistas "informais" estabelece, em princípio, a ponte entre os dois mundos. Fayga, no entanto, encurta em muito as distâncias que separam Ocidente-Oriente, possibilitando que suas imagens, à maneira oriental, sejam verdadeiras. Ela realiza o apelo aos sentidos moderados pela atividade do espirito.
Norteada por um profundo humanismo, a gravadora procura com sua arte encontrar-se e revelar-nos o sentido da vida. Por acreditar na vida ela quer a beleza. A beleza oriental é o Verdadeiro, e o Verdadeiro manifesta o TAO.
Seria o caso de pensar: Não realiza Fayga, através de suas gravuras, a revelação da vida da inteligência e do coração? Não experimentamos diante de suas imagens a sensação de que é preciso suspender o conhecimento e deixar fluir a experiência? As imagens de Fayga não nos acordam? Em tudo isso, não estariam as ressonâncias orientais? Aproveitamos as palavras de Pedro Block como resposta as nossas indagações:
Fayga, pássaro e gente, tão gente e tão pássaro! está tão perto do mistério da criação... que o teme, como se tocasse algo sagrado. Não contamina a matéria, dignifica-a, purifica-a, revela-a diante de si mesma. Duvida com humildade, como se trabalhasse de joelhos a cumprir uma prece ou promessa divina.
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