História da Arte |
Graffiti uma arte bem urbana
Desde os tempos do homem das cavernas, até os nossos dias, o fenômeno da representação pelo desenho vem ocorrendo. Ao desenhar em suas paredes, o homem das cavernas procurava abstrair o animal desejado por ele, sem possuir noção do que fosse arte. Ele apenas representava o animal desejado por crença em conseguir caça-lo para sua sobrevivência. No entanto, ao manifestar-se, ele já demonstrava vontade de se expressar.
A tinta spray surge nos EUA junto com o "boom" da indústria automobilística nos anos 50. Ela foi desenvolvida neste período para ser empregada em pequenos reparos domésticos como: geladeiras, fogões, etc, e até mesmo nos reparos de latarias de automóveis que tivessem suas pinturas danificadas. Com o surgimento do movimento Hippie nos anos 60 nos EUA contra o "establishment", países do terceiro mundo, não só passaram a se utilizar da lata de tinta spray para reparos domésticos, mas também para expressar palavras de ordem em oposição à situação política vigente em seus países, nas suas manifestações de rua.
No Brasil não foi diferente. Após o período do uso do piche pelas agências de propaganda, principalmente nos anos 40/50 com as Casas Pernambucanas anunciando sua linha de produtos nos muros e suportes públicos dos mais diversos, o spray também chega ao Brasil e passa a ser empregado nos anos 60 como mais um material utilizado para propagação de palavras de ordem nas principais cidades do país, anunciando o possível golpe de Estado que estaria por nos colocar em processo de estagnação política e das liberdades democráticas. Foi então, durante este período de transição histórico-político pelo qual passamos, que um artista etíope naturalizado brasileiro e de nome Alex Vallauri começa no cais do porto de Santos, cidade onde viveu com a família por alguns anos, a criar seus primeiros personagens. Tratava-se de suas primeiras imagens iconográficas que retratavam os atores sociais do cais do porto: marinheiros, prostitutas, estivadores, etc.
Neste mesmo período nos EUA, surgiam as grandes expressões da pop arte, que já começavam a usar o spray como material-suporte para suas obras "semiótica-contemporâneas" ( leia-se artistas de peso como Andy Warhol, Roy Lieinchestein, etc). Pesquisador da variedade de imagens que os simples carimbos de almofada ofereciam, além dos processos de repetição de imagens proporcionadas pela arte do clichê, Alex começa a desenvolver a partir das técnicas da gravura, suportes que os profissionais da área chamam de recortes ou matrizes. Estudioso dedicado, Alex passa então a realizar uma fascinante viagem pelo mundo dos papéis de embrulho dos mais diversos, que com suas marcas e desenhos de criação características e comumente utilizados por açougues, padarias, farmácias, formavam um vastíssimo e rico arquivo imagético para seus propósitos artísticos.
Deste período de gestação criativa até sua viagem para Nova York onde manteve contato com o que de melhor vinha acontecendo lá, Alex deixa no Brasil a primeira semente de sua arte, que anos depois viria a germinar. De volta ao país já nos anos 80, Alex começa aqui o processo de difusão da arte do graffiti, contemplando-nos com o aparecimento da imagem de uma pequena mas muito curiosa botinha da couro preta ( quem não se lembra?). Neste período, já conhecíamos semelhante fenômeno que não só de uso político em muros, mas em muitas pedras existentes ao longo das rodovias do Brasil. Tratava-se da mensagem de um novo tipo de raça de cão que vinha sendo reproduzida aqui: o "CÃO FILA".
Curiosamente, surge um jovem adolescente de classe média ( hoje artista plástico formado por universidade) que passa a "pichar" seu próprio nome em todas as cidades do Brasil. Seu nome: JUNECA. Das muitas relações criativas com diversos artistas de peso como: Carlos Matuck e irmãos, Hudinilson Jr. dentre outros, Alex Vallauri continuava produzindo. Da amizade de muitos anos, Alex retoma projetos artísticos com o até então, polêmico e versátil escritor, artista plástico e multiperformer Maurício Villaça.
A partir deste encontro, muitos projetos começam a surgir, e Alex decide participar da Bienal de São Paulo trazendo a público por completo, com bota e tudo mais, a sua "Rainha do Frango Assado". Maurício Villaça começa a dominar as técnicas do grafite e junto com Alex acaba por difundir as muitas possibilidades plásticas que o graffiti poderia proporcionar. Mais nomes de expressão na arte do graffiti estão presentes: John Howard, Grupo Tupynãodá, Ozéas Duarte, Eduardo Castro, dentre outros. A "Rainha do Frango Assado" ganha corpo e na figura da bailarina Mara Borba vai para o teatro e faz sucesso. Nesta mesma época, na voz de Caetano Veloso, o graffiti ganha pulso musical e serve como inspiração para o compositor. Muitos adeptos do graffiti começam a surgir.
Fascinados pelas múltiplas possibilidades plásticas que a arte do graffiti oferecia, muitos jovens artistas sofrem influências e acabam formando o que se chamou da "geração de grafiteiros dos anos 90". Junto com a "boom" do graffiti, surge uma geração de jovens da periferia da cidade que com uma latinha de spray na mão, passa a se expressar, pichando os monumentos e obras arquitetônicas da cidade. Preocupados com esta avassaladora onda de pichação, mortes e perseguições que estes "pichadores" passam a enfrentar, Maurício Villaça, Ozéas Duarte, Eduardo Castro, Hudinilson Jr, e muitos dos artistas da geração 90 passam a oferecer oficinas de graffiti para estes jovens. A iniciativa traz resultados. Muitos deixam de lado a pichação e passam a fazer parte do universo da arte do graffiti, surpreendendo com sua criatividade e técnica.
Todos os anos comemora-se dia 27 de Março o "Dia Nacional do Graffiti no Brasil" por decreto lei sancionado pelo Presidente da República, data da morte do artista Alex Vallauri. Maurício Villaça veio a falecer no ano de 1993. Os dois artistas, irmão e querido amigo, bem como outros que continuam, deixaram deste período muitas lembranças e fortes influências, diria, revolucionárias na história das Artes Plásticas no Brasil.
Marcos Villaça
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Alex Vallauri: trajetória passo a passo
Alex, da gravura ao "grafitti", interveio na cidade na década de 80, apropriando-se de seus espaços exteriores e interiores.
O nome de Alex Vallauri é sempre associado ao "graffiti", mas suas intervenções, de 1978 a 1987, na cidade de São Paulo, decorrem de uma vivência de duas décadas dedicadas à gravura. De todas as técnicas, o "graffiti" é a que mais o aproxima do seu ideário de uma arte para todos: "Enfeitar a cidade, transformar o urbano com uma arte viva, popular, da qual as pessoas participem, é a minha intenção".
Como gravador, Alex não utiliza procedimentos tradicionais; suas matrizes são recortadas como módulos que, associaddos durante a impressão, possibilitam diferentes composições. Na XI Bienal Internacional de São Paulo, 1971, Alex participa, com três xilogravuras de grande formato, da coletiva Gravura-Sala Didática, que reúne trinta e quarto gravadores brasileiros.
O interesse de Alex Vallauri peo kitsch aparece nos anos 70, quando estampa camisetas com imagem da Santa Ceia de Leonardo da Vinci, diretamente de um alto-relevo em metal, comercializado em lojas de artigos religiosos; e quando cria o múltiplo Sapato de Salto Agulha , contruído a partir de uma fôrma de madeira para fazer sapatos e de um salto plástico, com sete e meio centímetros de altura, unificados pela cor vermelha.
A partir daí Alex intensifica seu interesse pelo tema, e inicia em 1974 o registro fotográfico de painéis de azulejos, pintados na década de 50 nas paredes de bares e restaurantes de São Paulo, procupado com possíveis reformas e demolições. Os motivos repetem-se com freqüencia: bailarinas clássicas, dançarinas espanholas, moças com cestas de frutas, ou de pães ladeadas por espigas de trigo, e vistas do centro da cidade mostrando a urbanização do Vale do Anhangabaú. A maior parte dos murais traz a assinatura do Atelier Moral , visitado por Alex que entrevistou o proprietário.
Esta documentação resultou no audio visual Arte para Todos, apresentado em 1977 na XIV Bienal Internacional de São Paulo, que propunha um debate internacional sobre o tema "O Contemporâneo na Arte". Alex se inscreve em uma das sete proposições em debate - Arqueologia do Urbano que, nas palavras do Conselho de Arte e Cultura: "São imagens das constantes modificações... de construção/destruição/reconstrução do meio urbano."
A XIV Bienal, ao propor sintonia com o contemporâneo, e ao se tornar um espaço de experimentação e não de consagração, alinha-se com o pensamento da comunidade de artistas e profissionais ligaados à arte neste período. Sérgio Miceli e Silvana Rubino registraram esta tendência: "A questão internacional versus nacional ganha novas formas e conteúdos. Não se procura mais aquilo que é tido como genuinamente nacional, pois o Brasil se integra à nova sociedade de massas mundial e a crítica desse período não é mais a mesma dos artistas politicamente engajados dos períodos anteriores. Seu espaço, por excelência, é a cena urbana. A metrópole vira tema, motivo, linguagem e conteúdo."(1)
Após a documentação ddo kitsch urbano na decoração de bares e restaurantes, Alex, como artista gráfico, volta seu interesse para motivos de papéis de embrulho de confeitaria, padarias e estabelecimentos comerciais; passa também a colecionar carimbos de uma fábrica de clichês, com desenhos dos anos 50. Chega a reunir 400 carimbos, de várias procedências, que vão compor seu repertório de imagens usadas nos "graffitis", álbuns de arte postal e livros de artista.
O audiovisual Arte para Todos explora espaços públicos, e esta motivação, aliada ao interesse pelos carimbos, irá impulsioná-lo para a intervenção na cidade com o "graffiti".
Em depoimento ao arquiteto e pesquisador Valdir Arruda, Alex comenta a passagem da documentação de interiores públicos para a intervenção de rua, em espaços exteriores, e seu repertório, de imagen utilizados nos "graffitis": "Depois desse trabalho de documentação de murais, eu comecei a ver esse movimento de poesia, de "graffiti". Meu "graffiti" tem muita coisa de carimbo e publicidade, coisas de iconografia de massas, que já são muito conhecidas e que já estão no inconsciente coletivo. Eu tentava fazer uma imagem que as pessoas pudessem reconhecer, pois na rua qualquer pessoa passa; então, quando pego estereótipos, tento, simplificar ao máximo, para fazer uma imagem de rápida gestalt, de indentificação imediata." (2)
Em 1978, Alex inicia anonimamente a edição contínua do "graffiti" da bota preta, de salto agulha e cano longo, espalhando-a por toda a cidade. Na série da bota, em escala maior que o natural, Alex inicia grafita usando tinta em bisnaga aerosol sobre uma matriz de papelão vazado, fixada sobre a parede, sem detalhes, como uma sombra projeta em silhueta.
Em outubro desse ano, através da arte postal, envia para artistas e amigos, seqüencia de postais; combina neste trabalho o xerox de cartão postal dos edifícios Itália, Copan e Hilton, e o carimbo da bota preta que se sobrepõe aos edifícios, com um texto no verso a respeito da bota que invade a cidade. Para divulgar o "graffiti" da bota, Alex escreve com Túlio Feliciano o álbum de arte postal Trajetória Passo a Passo. Completa sua ocupação do espaço público com a bota estampada em serigrafia sobre camisetas, criando um "graffiti" móvel.
Giulio Carlo Argán, ao definir espaço urbano, confirma a concepção intuitiva de Alex de invadir com a bota a cidade de São Paulo ("graffiti"/arte postal/camisetas serigrafadas): "São espaço urbano também os ambientes das casas particulares; retábulo do altar da igreja, a decoração do quarto de dormir ou sala de jantar, até mesmo o vestuário e o ornamento com que as pessoas se movem, recitam a sua parte na dimensão cênica da cidade." (3)
Além dos carimbos, Alex se apropria de imagens do universo da história em quadrinhos e da história da arte - a pantera, de Jim das Selvas, de Alex Raymond (década de 40) e o acrobata, detalhe do quadro O Circo (1891, inacabado), de Georges Seurat (1859-1891).
Há uma sintonia na escolha da imagem do acobrata, que executa uma pirueta de costas, e cujo movimento Seurat simplifica, e do qual Alex ao eliminar os detalhes todos os detalhes, transforma numa silhueta. Robert H. Herbert (4) prova que Seurat tomou a figura do acrobata emprestada de um cartaz de rua de Jules Chéret (1836-1931).
Sheila Leirner define o "graffiti": O "graffiti", de modo geral, sussesor dos affiches, é o recurso metropolitano de linguagem mais popular e espontâneo usado no nosso século. Convivendo com os outdoors os cartazes de rua, e a massa de informações visuais indrustrializadas e de consumo, ele representa sobretudo aquele conjunto artezanal de imagens que a movimentação do homen naturalmente desenha. A pichacão como arte tem seu lugar bastante defenidodentro das chamadas artes plásticas, sempre a um objetivo democrático...(5)
Da rua para rua, a apropriação de Alex nos anos 80 fecha o ciclo iniciado por Seurat quando "empresta" de Chéret, em 1891, o acrobata.
Concluímos com Clément Greenberg que: "A cultura superior é uma das mais artificiais de todas as criações humanas...(6)
Em 1981, Alex passa a ocupar espaços cada vez maiores com seus "graffitis"; compõe três panteras em arco e três acrobatas em círculo, em movimento seqüencial. Cria o "graffiti" dos perfis que se beijam, completados a traço livre, onde os lábios são dois corações partidos.
Nesse mesmo ano, o "graffiti" cosegue seu reconhecimento oficial quando alex apresenta, a convite de Fábio Magalhães, a documentação de seus três anos de trabalho no audio visual Interferência Urbana-Graffitis de Alex Vallauri, em sua exposição Muros de São Paulo, na Pinacoteca do Estado. Convidado por Júlio Plaza, participa ainda da exposição de Arte Postal, na XVI Bienal Internacional de São Paulo, sob curadoria geral de Walter Zanini.
Pelo conjunto de sua obra, em 1981 recebe o prêmio Arte Comunicação, da Associação Paulista de Críticos de Arte.
A partir dos "graffitis" da bota, da luva que aponta, do sutiã pontilhado, completado a mão livre, começa a tomar forma o "graffiti" de uma mulher. Apresenta esta mulher com recursos gráficos que permitem rápida indentificação: cabeça de perfil, torso frontal e perfis de pernas com botas de salto agulha.
Em oposição ao desenho idealizado da mulher na publicidade dos anos 50, cria a pantereta de pele morena, cabelos escuros, feições com traços fortes e lábios carnudos. Ela surje pela primeira vez em Nova Yorque, quando em 1982 grafita o mural de Tomkins Park, East Village, Manhattan, por encomenda da prefeitura. Durante a elaboração dese mural, questionado pela comunidade afro-latina, muda a cor da pele e dos cabelos para melhor indentificação com os moradores do bairro. Daí em diante incorpora esta consciência ideológica na criação de seus personagens.
A partir de 1983, em suas instalações e intervenções em interiores de residências, confunde com humor o olhar quando intercala móveis e seus fac-símiles em escala real. Cria imitações de objetos de consumo ao camuflar elétrodomésticos com estampa de onça.
Em 1985, apresenta na XVIII Bienal Internacional de São Paulo, a convite da curadora Sheila Leirner, a Festa na Casa da Rainha do Frango Assado. A intalação, distribuída em 88 metros quadrados, é dividida em painéis que definem as áreas úteis da casa. O mobiliário e os objetos são da década de 50, parte reais, parte virtuais, grafitados nos painéis. Todos os elétrodomésticos eo Monza 85, cedido pela GM, recebem estampa de onça. Músicos e panteretas grafitados surgem sentados à mesa, de pé, na banheira, no chuveiro, ao lado de janelas com vista noturna da cidade. Ao lado barman, bebidas oferecidas por um patrocinador são servidas, e a trilha sonora da Festa... são as salsas da cubana Célia Cruz.
De maneira irônica, parodia com uso deliberado deo kitsch a sensualidade esteriotipada da mulher latina, transportando o apelo erótico da estampa de onça de suas roupas para toda a instalação da casa.
A propósito da Festa na Casa da Rainha do Frango Assado, Alex disse: "Niguém consegue viver longe do kitsch, porque ele faz parte da realidade de qualquer pessoa, do mendingo à rainha da Inglaterra. O kitsch é uma situação romântica, e eu incorporei móveis e utensílios domésticos ao repertório.
Durante toda sua trajétoria profissional, Alex criou um arquivo de imagens refêrenciais da década de 50, colecionando retalhos de tecidos, capas de discos e material gráfico em geral. Dentre as suas lembranças de infância, na Argentina, estão exprimentações sensoriais - como aprender a diferenciar estilos de móveis e objetos no antiquário de seus pais e a ouvir músicas latinas, tangos, boleros e as interpretações de José Feliciano e Célia Cruz. Alex encontrava muito humor no sentimentalismo destas canções, que o acompanhavam em todas as suas horas de trabalho na oficina e como trilha sonora de suas exposições.
Seu comprometimento com o kitsch, sua opção pela silhueta e por imagens de leitura rápida, facilmente indendificáveis, o uso do trompe-loeil criam espaço e tempo para que seu clichê da década de 50 caiba nos anos 80.
Trazer o passado para o presente, apropriar-se de imagens e recontextualizá-las, fazer interferências na cena urbana, são atitudes que legitimam Alex como artista dos anos 80, impregnado de pós-modernidade.
Maria Olímpia de Mello Vassão e Maria Adelaide do Nascimento Pontes
Pesquisadoras da Equipe Técnica de Artes Plásticas, do Centro Cultural de São Paulo
Este artigo foi publicado na Revista DArt, número 02, em 1998, pela Divisão de Pesquisas do Centro Cultural de São Paulo, Prefeitura da Cidade de São Paulo.
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Grafiteiros passo a passo rumo à virada do milênio
Vinte e duas horas e vinte e sete minutos do dia 9 de março de 1979. Um homem magro e cabeludo, trajando um sobretudo escuro, atravessa a Av. Ipiranga empunhando em suas mãos trêmulas, uma lata de spray vermelho-fogo. Seu olhar atento avista um muro grande bem pintado em branco. Observa à sua volta e supondo-se sozinho, tão rápido quanto o pensamento, surge naquele muro "Ah, AH, Beije-me" ao lado de uma enorme boca aberta, carnuda, exposta lembrando uma prostituta. Ao tampar a lata e deixar o local, olhando para os lados leva um grande susto, pois quase que do nada, um outro homem pequeno e extremamente rápido, havia já graffitado ao lado de sua bocarra, uma intrigante botinha preta, cano alto e salto agulha. Quando este dobrava sua máscara (molde vazado sobre o qual se aplica tinta spray) é que percebeu a presença do primeiro. Entreolharam-se e falaram quase a um mesmo tempo: Ah, então é você? Nesse momento acontece o que, num futuro próximo viria a ser uma das mais fecundas identificações de propostas artísticas, uma sólida amizade entre dois dos mais apaixonantes artistas contemporâneos que esta cidade produziu. O primeiro e Hudinilson Hurbano Jr. este artista e o que, juntamente com Mano Ramiro e Rafael Franca formou o grupo 3NÓS3, que tinha como proposta, intervir na paisagem urbana propondo "intervenções" como o próprio artista ,declara, oferecer a cidade uma nova versão ao espaço urbano.
No produtivo ano de 1979, o grupo encapuzou com sacos de lixo, as estátuas da cidade visando chamar a atenção das pessoas
que nunca ou quase nunca, reparavam em seu dia a dia, as obras de arte nas estátuas de nossa cidade. Na manhã seguinte, a imprensa registrou o fato. No mesmo ano vedaram as portas das principais galerias com um X em fita crepe deixando um bilhete em cada uma: "O que está dentro fica, o que está fora se expande". Em 1980, o grupo, em mais uma ação noturna, estendeu cem metros de plástico vermelho pelos cruzamentos e entradas no anel viário da avenida Paulista com rua Consolação. O Detran, porem, desmontava essa e outras ações do grupo. Esse Grupo realizou uma série de dezoito intervenções pela cidade até 1982, quando dissolveu-se. Hudinilson, enquanto integrante do grupo mantinha sua produção artística paralelamente, utilizando colagens e arte xerox, da qual é apontado hoje, como um de seus precursores no Brasil. No exterior foi grande repercussão da performance "Narcisos", onde Hudinilson, diante do público, no MAM do Rio de Janeiro, auto xerocou-se de corpo nó. Essa mesma façanha, realizou em São Paulo, na TV Cultura, como também na FAAP onde não pode concluir seu trabalho na íntegra devido a censura pela exposição de nudes.
O outro artista (da botinha) trata-se de Alex Vallauri, um dos principais precursores do graffiti no Brasil. Era Italo-Etíope e chegou ao Brasil vindo de Buenos Aires em 1964. Desde então costumava desenhar mulheres do porto de Santos em trajes íntimos. De 78 a 80, começou a executar suas máscaras em São Paulo, onde passou a morar para estudar na FAAP. E onde viria a ser professor. Seus primeiros graffitis eram muito simples mas foram aprimorados. A já citada bota de mulher foi acrescentando uma luva preta apontando, depois óculos escuros anos 50, depois um biquini de bolinhas e finalmente surgiu uma mulher latina formada com esses detalhes e a cidade, curiosamente foi acompanhando essa aparição passo a passo misteriosamente nos anos 70. As mascaras do Alex vieram das aulas de gravura na FAAP, logo havia o graffiti dessa mulher apontando um frango assado. Assim, ela foi apelidada de rainha do frango assado feita em tamanho natural com maiô de pele de onça. Muitos dos graffitis vinham de uma grande coleção de carimbos dos anos 50. Alex carimbava e ampliava o tamanho desejado, depois recortava e colava em papel duplex. Todos queriam saber quem era o autor das imagens negras nas paredes da cidade. Quando a imprensa o descobriu ele ficou famoso e participou de três bienais de São Paulo e além de muitas exposições em galerias. São dessa mesma época inicial as poesias graffitadas como Hendrix Mandrax Mandrix, de Valter Silveira, assim como a frase "E DIFÍCIL" em formato de prédios, de Tadeu Jungle e outros. Logo depois de Alex, que praticamente incentivou mais o Hudinilson Jr. a fazer graffiti, varios outros artistas de peso aderiram e passaram a usar a cidade como suporte para suas obras. Entre eles surgem Carlos Matuck, Waldemar Zaidler, Mauricio Villaça, John Howard, Ozéas Duarte, Ivan Viana Sudbrack e diversos outros não mencionados porem de importante colaboração para o desenvolvimento de uma linguagem própria feita no Brasil.
Surgiu a escola Vallauriana, constituída por artistas que se utilizavam de máscaras e que com o tempo foram coordenando oficinas onde essa técnica foi sendo transmitida e se aprimorando. Jorge Tavares um dos principais colaboradores, introduziu a técnica do filó que possibilita maior fidelidade em termos de imagem e durabilidade da mascara. Dessas oficinas surgem outros ótimos artistas como Eduardo Castro, Cláudio Donato, Marcia e Carmem, Neto e Mona, etc.
Do pessoal do graffiti, em grande escala feito a mão, apareceu também o genial grupo Tupinãodá (José Carratu, Rui Amaral, Jaime Prades e Carlos Delfino) que originou outras formações. Também a troupe dos graffitis americanos surgidos junto com o movimento hip hop em São Paulo. Quem não se iembra da galera da São Bento, Thaíde Dj hum e outros precursores do som rap, aqui em Sampa? Dessa produção de graffitis surgem Renato Del Kid, os Gêmeos, entre outros. Interessante lembrar que, nos EUA o metrô novaiorquino é todo graffitado nesse estilo (letras e frases excessivamente coloridas à base de tinta spray, demonstrando primorosa técnica). Lá, o graffiti surgiu como opção de mídia alternativa, ou seja, negros e hispânicos, precursores dessa linguagem, não tinham espaço na mídia americana, principalmente nas rádios que simplesmente deixavam de tocar o som rap. Em vista disso, os jovens artistas usavam o metro para divulgar idéias e ideais, eventos e até óbitos. No Brasil, esse estilo não invadiu o metrô (nós sabemos que o metrô de São Paulo é um dos mais limpos do mundo), mas, acontece nas ruas e túneis da cidade.
Apesar de muitas águas já terem rolado em termos de graffiti em São Paulo, o registro dessa produção é quase inexistente e não há nenhum livro sério que trate do assunto como deve. Tanto em termos conceituais quanto em qualidade de impressão, cores, etc. Acho isso um tremendo vacilo da parte dos realizadores da arte (empresários, editores, etc) pois constantemente muitos gringos vem pra cá observar nosso estilo ainda buscando troca de informações entre nossos graffiteiros.O crítico de arte e repórter fotográfico Enio Massei que esteve no Brasil, em 1989, ficou impressionado com a qualidade do nosso graffiti. São palavras de Massei: "São Paulo tem o privilégio de ser a unica cidade do mundo a ter um grupo de artistas trabalhando dentro de uma coerência linguística com homogeneidade que não se encontra nem mesmo em Nova Iorque. Conheço todas as capitais do mundo e posso garantir que São Paulo é o centro do graffiti ocidental". Em 1993, Barry Mcgee, artista plástico americano, esteve em São Paulo e seu interesse pela arte em espaços públicos e pela discussão da questão da multiculturalidade levou-o a uma participação em instituiçôes culturais comunitárias. Através de uma delas, o Centre for the Arts em Yerba Buena Gardens, em São Francisco, foi selecionado e convidado a participar do programa internacional para artistas Lila Wallace-Readers Digest, mantido pela Arts International, uma divisão do Institute of International Educatíon, de Nova Iorque. Barry chegou a conhecer vários artistas graffiteiros. Eu mesmo, trabalhei com ele sob o viaduto da Praça Roosevelt. Foi bem interessante notar que ele é um artista muito criativo e rápido.
Alex Vallauri fez sua passagem para o além em 26 de março de 1987 e no dia 27, seus amigos artistas decidiram homenageá-lo graffitando o túnel da Av. Paulista. Essa data se tornou o dia nacional do graffiti e todo ano, nesse dia, acontece o mesmo ritual pela cidade, sempre em bandos. Em 93, contamos com a colaboração do poeta e músico Itamar Assumpção o qual o também finado Maurício Villaça admirava muito por o considerar um hiper irreverente e criativo artista. Itamar, conhecido como Negro Dito, presenteou-nos com um show que rolou no espaço "Sequestro" na Vila Mariana, que hoje não mais existe. Quem viu não esqueceu.
Nós, artistas, com trabalho próprio, caminhamos um pouco devagar pois precisamos de apoio e força para continuarmos transformando toda essa enxurrada imagética descartável empurradas goela abaixo pela mídia e paisagem urbana caótica, em arte elevada sempre com humor e muito amor.
Meu abraço a todos os artistas de rua e... VIVALEX.
Celso Gitahy
Artista plástico formado pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo.
Participou de várias exposições coletivas e individuais, desde 1989 vem se utilizando do graffiti e performances urbanas como linguagem. Diversas vezes convidado a coordenar oficinas bem como proferir palestras sobre graffiti em órgãos públicos e privados. Chegando a produzir com apoio da Secretaria Municipal de Educação, o vídeo Graffiti Paulista e seu Poder de Comunicação.
Artigo escrito para a Revista Cidade (Revista do Patrimônio Histórico/Secretaria Municipal de Cultura), número 03, em 1995.
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