História da Arte |
Sua auto-denominação é Kaapor ou Kaapór (o apóstrofo representa uma parada da glote; o acento tônico na língua Kaapor em geral cai na última sílaba). Outros nomes pelos quais são conhecidos são Urubu, Kambõ, Urubu-Caápor, Urubu-Kaápor, Kaapor.
Kaapor parece derivar de Kaa-pypor, "pegadas na mata" ou "pegadas da mata". Outro significado aventado para Kaapor é o de "moradores da mata". Contudo, a expressão "moradores da mata" na verdade exprime-se melhor pelo nome que os Kaapor atribuem aos índios caçadores-coletores Guajá, seus vizinhos, Kaapehar.
A pessoa também pode ser identificada na língua Kaapor como awá, que se refere à forma reflexiva ("alguém") e ao sujeito, enquanto pessoa, nas sentenças interrogativas ("quem?"); awá está relacionado com os termos inflexivos referentes a "pessoa" e "povo" em várias outras línguas Tupi-Guarani. Kambõ parece ter sido assimilado do português "caboclo", um termo aplicado aos Kaapor pela maioria dos brasileiros da região nos dias de hoje, provavelmente de origem amazônica e freqüentemente usado pelos que falam a língua Kaapor numa auto-referência quando em conversa com terceiros.
O termo Urubu foi evidentemente atribuído ao povo Kaapor durante o século XIX pelos inimigos luso-brasileiros, sendo esta etmologia dada pelos próprios informantes Kaapor, embora estes não se refiram a si mesmos pelo termo quando falando com terceiros. Os termos hifenizados Urubu-Caápor e Urubu-Kaápor foram introduzidos pelos indigenistas brasileiros nos anos 50, numa tentativa de padronizar, na etnologia, a grafia dos nomes de grupos nativos.
Kaapor é uma língua da família Tupi-Guarani. Não é falada por nenhum outro grupo conhecido, exceto como segunda língua por alguns Tembé e outros moradores da região do Gurupi etnicamente não considerados Kaapor; dialetos da língua são minimamente desenvolvidos. Pequenas diferenças léxicas e livres variações podem ser notadas entre o povo Kaapor originário das aldeias da bacia do Turiaçu e o da bacia do Gurupi. A língua não se aproxima das línguas Tupi-Guarani faladas pelos grupos mais próximos geograficamente, Tembé (Tenetehara) e Guajá: das duas, parece ser ligeiramente mais parecida, léxica e foneticamente, com o Guajá.
Historicamente, é provavel que a língua Kaapor esteja mais intimamente relacionada à língua Waiãpi, que é falada a uma distância de 900 km, no outro lado do rio Amazonas. Ambas foram altamente influenciadas nos últimos 300 anos por outras línguas e, hoje, são mutuamente incompreensíveis. A língua Kaapor parece ter sido mais influenciada gramaticalmente pela língua geral amazônica; a Waiãpi, pelas línguas Carib setentrionais. Uma grande diferença entre elas é a tonicidade: na língua Kaapor, as palavras são normalmente oxítonas; na Waiãpi, paroxítonas.
Embora não existam regras de distinção entre falas masculinas e femininas, os Kaapor são lingüisticamente peculiares na Amazônia por terem uma linguagem padrão de sinais, usada para a comunicação com os surdos, que até a metade dos anos 80 compunham cerca de 2% da totalidade de sua população. A incidência de surdez deveu-se evidentemente à bouba neonatal e endêmica, que foi erradicada.
Cerca de 60% do povo Kaapor é monolíngüe; os outros 40% falam um português tosco ou regional. Uma porcentagem bem pequena (2%?) fala Tembé ou outra língua indígena, como a Guajá. Educação primária em português e na língua Kaapor tem sido oferecida, de forma intermitente, nas escolas da FUNAI no Posto Canindé e na aldeia Zé Gurupi desde os anos 70. Até agora, contudo, nenhum índio Kaapor terminou o segundo grau e muito menos a faculdade. Uma minoria de jovens Kaapor matricula-se nessas escolas, havendo um índice elevado de analfabetismo.
Os Kaapor vivem no norte do Maranhão. Suas terras fazem limite, ao norte, com o rio Gurupi; ao sul, com os afluentes meridionais do rio Turiaçu; a oeste, com o Igarapé do Milho; a leste, com uma linha no sentido noroeste-sudeste quase paralela à rodovia BR-316. Todos os córregos e rios drenam para três grandes rios: Maracaçumé, Turiaçu e Gurupi, que, por sua vez, desaguam diretamente no oceano Atlântico.
A altitude máxima é de cerca de 250 metros acima do nível do mar nas regiões montanhosas, onde as cabeceiras do Maracaçumé, Turiaçu e Gurupi estão mais próximas umas das outras.
Chove cerca de 2000 a 2500 mm por ano, sendo que a maior parte deste volume cai durante a predominância dos ventos vindos de leste de janeiro a maio.
A vegetação predominante é a floresta alta pré-amazônica. Certas espécies pan-amazônicas estão historicamente ausentes na região, tais como castanheira, assacu, mucajá, buriti e a vitória-régia. Vários espécimes da fauna aquática do rio Amazonas, tais como poraquês, arraias, botos e peixes-boi, estão também ausentes. Mas a diversidade de espécies, a área basal e a fisionomia da floresta pré-amazônica são comparáveis às de outros lugares da floresta Amazônica.
A maior parte da fauna terrestre, incluindo mamíferos, insetos, répteis e aves é amazônica; alguns deles são até mesmo endêmicos ou raros e ameaçados, tais como o jaguar, o periquito dourado, o macaco capuchinho Kaapor (Cebus Kaaporii) e o sagüi barbado (Chiropotes satanas), também um macaco.
As árvores de floresta alta predominantes no hábitat Kaapor incluem o matá-matá (Eschweilera coriacea), breu (Protium spp.), andiroba (Carapa guianensis), pau cachimbo (Mabea caudata) toari (Couratari spp.), bacaba (Oenocarpus disticha) e pente-de-macaco (Apeiba spp.). Nas florestas crescidas sobre antigas capoeiras, as árvores comuns incluem jenipaparana (Gustavia augusta), babaçu (Attalea speciosa), tucumã (Astrocaryum vulgare), inajá (Attalea regia), taperebá (Spondias mombin), jatobá (Hymenaea spp.) e abiu (Pouteria spp.).
Outros importantes complexos de vegetação incluem as florestas pantanosas e as florestas sazonalmente alagadas, sendo espécies comuns o açaí (Euterpe oleracea), sumaumeira (Ceiba pentandra), marajá (Bactris spp.) e embaúba (Cecropia spp.). Complexos de menor porte são os roçados de idades variadas e os pomares, incluindo mandioca, lavoura de batata doce, de inhame, banana, urucum, algodão e mamão.
Os antepassados Kaapor, que parecem ter fugido da expansão da sociedade luso-brasileira no sul do Pará, chegaram e se estabeleceram nas suas terras atuais (indo além) no Maranhão nos idos de 1870. As origens do povo Kaapor como grupo étnico distinto remontam a um centro amazônico Tupi-Guarani localizado entre o baixo Tocantins e o Xingu no final do século XVII e início do século XVIII; os habitantes nativos daquela região naquele momento eram conhecidos como os Pacajás. Os Waiãpi são provavelmente um outro grupo derivado daquele centro; os Amanajós das bacias do baixo Tocantins/Capim foram provavelmente também originários de lá. Enquanto os Waiãpi migraram para o norte, atravessando o rio Amazonas na direção da sua localização atual ao longo da fronteira do Brasil com a Guiana Francesa, os Kaapor migraram para o leste, cortando o rio Tocantins. Eles são conhecidos pela história documentada por terem se estabelecido sucessivamente nas bacias do rio Acará (ca. 1810), rio Capim (ca. 1825), rio Guamá (1864), rio Piriá (1875) e rio Maracaçumé (1878).
Cem anos depois, em 1978, a Área Indígena Alto Turiaçu, consistindo em 2048 milhas quadradas (5.301 km2) de floresta amazônica alta, ocupada por todos os remanescentes Kaapor, assim como por alguns Guajá, Tembé e Timbira, foi demarcada pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A demarcação foi homologada pelo Decreto nº 88.002 em 1982, na administração do Presidente João Figueiredo. No entanto, cerca de um terço da área vem sendo devastada ilegalmente e convertida em cidades, campos de arroz e pastagens por agricultores sem terra, fazendeiros, madeireiros e políticos locais desde o final dos anos 80.
Os Kaapor tiveram numerosos contatos documentados com a sociedade luso-brasileira entre o período dos Pacajás, nos idos de 1600, e o estabelecimento do contato prolongado, ou "pacificação", em 1928. A maior parte dos episódios relatados foram violentos. Os Kaapor da bacia do Capim atacaram vilas na bacia do Guamá no período de 1820 a 1830, evadindo-se com mulheres e canoas; os Kaapor na bacia do Capim foram, por sua vez, derrotados por milicianos e por recrutas Turiuara, que também falavam uma língua Tupi-Guarani.
Alguns homens Kaapor saquearam vilas na bacia do Guamá em 1864. Depois disso, 25 soldados da guarda nacional destroçaram uma aldeia Kaapor. Meses mais tarde, 150 soldados da guarda nacional perseguiram os remanescentes Kaapor até as cabeceiras dos rios Guamá e Gurupi. Em 1874, alguns Kaapor viviam na bacia do Piriá, desconhecendo-se qualquer contato dos mesmos com os colonizadores.
Nos idos de 1870, guerreiros Kaapor derrotaram e expulsaram um quilombo do lado maranhense do rio Gurupi, ocupando subseqüentemente o antigo local de refugiados como sua própria aldeia, próximo da atual aldeia de Gurupiuna. De 1870 até a chegada do Serviço de Proteção aos Índios em 1911, não diminuíram os ataques Kaapor a lugarejos e cidades no Pará e Maranhão, assim como a trabalhadores do telégrafo, garimpeiros, coletores de balata e outros índios, como os Guajajara, Tembé, Guajá e os Kren-Yê Timbira. Em sua maior parte, os ataques Kaapor pareciam ter como propósito a aquisição das ferramentas de aço das vítimas para serem utilizadas nas roças e na confecção de pontas de flechas.
Antes de 1820, os Kaapor podem ter gozado, de forma intermitente, de relações pacíficas com a sociedade luso-brasileira, até mesmo nos assentamentos das missões, o que se infere do folclore Kaapor. Se isto é verdade, ajudaria a explicar por que há tantos empréstimos e outras influências na língua Kaapor que parecem advir da língua geral amazônica, falada por missionários e por grande parte da comunidade paraense nos séculos XVIII e XIX.
Em 1911, o SPI empreendeu esforços visando a "pacificação" dos Kaapor, organizando um grupo que levava presentes em forma de ferramentas de aço e coisas parecidas, rio Turiaçu acima, na esperança de "atrair" os índios. Guerreiros Kaapor que espreitavam o grupo atiraram no maxilar de um voluntário, razão pela qual os esforços foram abandonados. Do outro lado do habitat Kaapor, ao longo do alto rio Gurupi, agentes do SPI também tentaram, em vão, pacificá-los entre 1911 e 1912. De 1915 a 1917, o SPI não teve recursos financeiros para os esforços de pacificação dos Kaapor. Em 1918 e 1920, após vários anos de trégua, ataques Kaapor motivados pela busca de ferramentas de aço tiveram lugar respectivamente na bacia do rio Guamá e em Bragança, perto da costa atlântica. Os Kaapor também foram agredidos por turbas de brasileiros enfurecidos durante este período; um agente de telégrafo no Maranhão, que organizou invasões às aldeias Kaapor, espetou as cabeças de suas vítimas próximo dos postos de telégrafo entre os lagos Viana e o rio Gurupi.
Finalmente, em outubro de 1928, ambos os lados tinham experimentado violência suficiente. De acordo com o saber tradicional Kaapor, um homem Kaapor, denominado Pai ("padre"), "pacificou" (mu-katu) os brasileiros no Posto Canindé do SPI, na região do Gurupi. O SPI afirma que foram os seus esforços em oferecer ferramentas de aço e outros bens sob tapiris que teriam levado os Kaapor a buscar a paz. Em 15 de dezembro de 1928, 94 índios Kaapor visitaram o Posto Canindé do SPI. Mais ou menos ao mesmo tempo, guerreiros Kaapor aproximaram-se da cidade de Alto Turi, junto ao rio Turiaçu, com as suas flechas apontadas para baixo, em sinal das intenções amigáveis. As guerras dos índios Kaapor haviam terminado, mas talvez não definitivamente.
Cerca de 1.300 posseiros, madeireiros e fazendeiros invadiram e estão desmatando a Terra Indígena Turiaçu, homologada desde 1989. Mais ou menos um terço das terras Kaapor, principalmente ao longo de seu limite oeste entre a área do igarapé do Milho e do igarapé Jararaca, vem sendo desmatada e ocupada por sem-terras insuflados por grileiros e políticos locais. A situação atual na região é marcada por tensão e pela escalada da violência. Ataques de posseiros e de madeireiros às aldeias indígenas, assim como contra-ataques dos índios aos acampamentos de posseiros e madeireiros dentro de suas terras, têm ocorrido desde 1993 com pelo menos duas vítimas fatais do lado karaí.
A paz atingida em 1928 entre as sociedades brasileira e Kaapor vem sendo minada e um novo estilo de guerra parece estar se desenvolvendo. Para os Kaapor, o inimigo de hoje não é tão claro quanto em 1928. Naquela época, o inimigo era qualquer um que não fosse Kaapor. A atual situação de contato interétnico é muito mais complexa. O Conselho Indigenista Missionário, outras ONGs interessadas, como a Survival International-Reino Unido, e alguns indivíduos levaram a questão das invasões ilegais das terras Kaapor à atenção de várias entidades, incluindo-se a imprensa brasileira local e nacional, o governo federal, a Comunidade Européia do Carvão e do Aço, o Parlamento Europeu e o Congresso Americano. Mas, o governo brasileiro ainda não interveio para deter ou reverter as invasões.
Os últimos 70 anos (1928-1998) assistiram a uma acomodação cada vez maior, mas não integral, da sociedade e cultura Kaapor aos modos ocidentais. Muitos falam português, embora todos falem Kaapor como primeira língua. Alguns professam uma crença em Tupã-raïr ("filho do Trovão", ou "Jesus Cristo"), já que a divindade cristã foi introduzida por missionários fundamentalistas do Summer Institute of Linguistics (hoje Sociedade Internacional de Lingüística), que atuaram na área de mais ou menos 1963 a 1985. Mas muitos Kaapor acreditam nos poderes divinos e curativos de Ïrïwar, uma divindade feminina, indígena, relacionada à água, cujo conceito foi parcialmente trazido dos Tembé e que é invocada no xamanismo.
Os Kaapor de todas as idades ouvem notícias e músicas do Brasil e do mundo em rádios-transistores de ondas-curtas, mas ainda passam muito tempo proseando e visitando as aldeias uns dos outros a pé pela densa mata.
A aldeia Kaapor (hendá) consiste normalmente em um ou dois agrupamentos residenciais uterinos. O irmão mais velho das irmãs casadas em um agrupamento uterino é normalmente o chefe (kapitã) do agrupamento, de forma que uma aldeia pode ter mais do que um chefe se houver mais de um agrupamento residencial. Enquanto a residência tende a ser uxorilocal, com a maior parte dos homens deixando o seu agrupamento de origem em razão do casamento para residir com os familiares de suas esposas, pelo menos um homem permanece, normalmente um filho do chefe, sendo a sua esposa quem se muda para viver com ele; entretanto, se ela é filha da irmã do seu pai, real ou classificatória, pode ser do mesmo agrupamento. O agrupamento é, politicamente, uma facção, baseada tanto no fato da co-residência quanto na doutrina da descendência repartida.
O poder político do chefe se limita a acertar os casamentos de suas irmãs reais e classificatórias com homens dispostos a casar no seu agrupamento, que lhe garantem lealdade difusa assim como as filhas solteiras casadouras deles, para que ele ou seus filhos possam casar mais tarde. Há uma ligeira tendência para os contratos de casamento com a filha da irmã do pai e com a filha da irmã (neste último caso também dito oblíquo) reais ou classificatórias.
A terminologia de parentesco é basicamente dravidiana, o que quer dizer que as pessoas chamam alguns de seus parentes por afinidade por termos de parentesco cognático (por exemplo, "tio" e "sogro" são a mesma palavra, tutyr). Portanto, a terminologia de parentesco dravidiana implica na regra de casamento de primos cruzados (filhos de um irmão e de uma irmã real ou classifcatória). A descendência é bilateral e não há metades, sibs ou linhagens. Não existem classes de idade tampouco grupos de festas cerimoniais. O privilégio da poliginia e módico respeito são obtidos pelo chefe que é generoso com seus pares e prudente em suas ambições políticas e materiais.
A sociedade é basicamente igualitária, não havendo autoridade central (o que pode estar mudando com as crescentes pressões de posseiros invasores). Cada aldeia tende a agir como uma entidade politicamente autônoma.
Mais de um agrupamento uterino pode constituir uma aldeia, especialmente as que abrigam mais do que 30 pessoas. No passado, o tamanho médio de uma aldeia comportava de 25 a 50 pessoas; hoje, algumas aldeias, como Gurupiuna (ao norte) e Zé Gurupi (ao sul), abrigam mais de cem, e não está claro se os padrões de liderança e de residência pós-matrimonial do passado poderão sobreviver. Algumas aldeias Kaapor estão se tornando como povoados.
Esta concentração reflete um aumento na taxa natural de crescimento populacional, bem como na pressão sobre o espaço disponível na terra indígena, tanto por conta da recuperação populacional quanto pela invasão da área por posseiros sem terra. Talvez a concentração em núcleos maiores lhes proporcione mais segurança.
Povo horticultor, os Kaapor, assim como vários outros grupos estabelecidos na Amazônia, dependem da mandioca brava como fonte principal de calorias. Eles a consomem principalmente na forma de farinha. Cultivam no total cerca de 50 espécies de plantas. Estas são usadas como alimento, tempero, remédios, fibras, ferramentas e armas. Além disso, eles caçam e coletam frutos nas matas densas e pescam em pequenos igarapés do seu hábitat para obter a maior parte do restante de sua alimentação.
Os animais de caça mais importantes na sua dieta são o veado galheiro, caititu, queixada, paca, cutia, macaco guariba, duas espécies de jabuti, jacaré e várias espécies de cracídeos, mutuns e tinamídeos. Nem tudo o que é comestível no habitat é aproveitado como alimento. E alguns itens comestíveis só são comidos algumas vezes por algumas pessoas. O complexo de tabus alimentares centraliza-se em ritos associados à fertilidade feminina, especialmente o resguardo e o ritual de puberdade. Para quem se encontra nestes estados, a única carne de animal terrestre permitida é a do jabuti de pé amarelo.
Importantes espécies de peixes incluem o surubim, pacu, piranha, traíra e jeju. Os mais importantes frutos silvestres coletados para alimentação incluem o bacuri (Platonia insignis), cupuaçu (Theobroma grandiflorum), piquiá (Caryocar villosum) açaí (Euterpe oleracea), bacaba (Oenocarpus distichus) e abiu cutite (Pouteria macrophylla).
A divisão sexual do trabalho não é rígida, mas as mulheres dedicam muito mais tempo do que os homens à preparação do alimento, especialmente no que diz respeito ao processamento da mandioca brava. Os homens passam bem mais tempo caçando do que as mulheres. No geral, os homens tecem as cestas, inclusive os tipitis (prensa de mandioca) enquanto as mulheres fazem as panelas, incluindo as grandes vasilhas (kamusi~) usadas para servir o caxiri de mandioca nas cerimônias de nomeação das crianças.
A arte plumária dos Kaapor é o seu trabalho de maior renome e dois livros inteiros foram dedicados a ela. As penas usadas vêm de numerosos pássaros, inclusive tangarás, que são especialmente difíceis de caçar devido ao seu pequeno tamanho e à sua preferência pela copa das árvores. Os velhos artesãos fazem cocares, brincos, colares, pulseiras, braceletes e adornos labiais de penas. Eles são ostentados com toda a pompa apenas nas cerimônias de nomeação das crianças, como testemunho da consciência que eles têm de si mesmos como povo.
A arte Kaapor é também vista nos desenhos geométricos característicos que as mulheres pintam nos rostos das pessoas com sumo de urucum e nas cabaças com tintura à base da casca da árvore makuku (Licania spp.). O trabalho artístico dos Kaapor, quando não é feito como um fim em si mesmo, esmaece na cultura material.
A cultura material inclui arquitetura da casa e da paisagem, ferramentas, armas, utensílios, redes e vestuário. A cerâmica está sendo substituída em grande escala por utensílios de cobre e alumínio importados, mas não é uma arte de todo perdida. A casa é construída a partir de um plano térreo retangular e tem um telhado inclinado. Ela normalmente acomoda uma família nuclear ou no máximo uma família extensa. As colunas são feitas basicamente de acariquara resistente ao apodrecimento; os barrotes e as vigas, de cerca de vinte espécies de madeira de lei. Os moradores dormem em redes de algodão amarradas às colunas e vigas, cortadas e erguidas pelos homens adultos. Normalmente uma fogueira é mantida acesa na casa para cozinhar e aquecer as noites frias do período da seca. As mulheres coletam quase toda a lenha, cuidam de manter o fogo e a maior parte do trabalho de cozinha.
O espaço imediatamente ao redor da casa é o quintal, geralmente mantido livre de ervas daninhas. Cada agrupamento residencial normalmente tem a sua própria casa de processamento de mandioca, onde o forno de farinha (outrora de argila, hoje em dia de cobre) situa-se no alto de um suporte de adobe. Ali a maioria das mulheres remexe a massa de mandioca sobre o calor até que se transforme em farinha (ui), principal sustento calórico da dieta, normalmente amolecida e bebida com água em pequenas cabaças como chibé (ui-tikwar). Também no quintal, os homens fazem a maior parte da carpintaria, cestaria e modelagem dos acessórios de aço, enquanto que as mulheres se encarregam de principalmente trançar, costurar e tecer.
Alguns Kaapor dizem que seus autênticos xamãs morreram numa inundação cósmica, mas o xamanismo é uma realidade em algumas aldeias, embora pareça ter sido uma prática adquirida dos Tembé. Os xamãs Kaapor dos dias de hoje invocam os "antepassados" (yande ramu~i~) e uma série de divindades como Ïrïwar (termo glosado como Mãe dÁgua) que se acredita ajudem os xamãs a predizer o futuro, a
restaurar suprimentos de caça esgotados e a diagnosticar e curar doenças.
Parece evidente que há alguma influência afro-brasileira no xamanismo Kaapor. Uma das divindades cujo apaziguamento se busca é o Kurupïr (curupira), um anão malévolo de pés deformados e pele negra, algumas vezes denominado "o pretinho". Rituais de cânticos, danças, fumo de tabaco e transe dos xamãs acompanham essas invocações. Os aprendizes ajudam com os cânticos e algumas vezes entram em transe também.
O xamanismo envolve uma performance pública, assistida por habitantes da aldeia de todas as idades. Os xamãs Kaapor afirmam ter sido chamados espiritualmente para esta ocupação ao terem sido arremessados (ombor) em um córrego pela Mãe d´Água, fato de difícil verificação empírica mas que talvez envolva alterações do estado de consciência induzidas por jejum e consumo maciço de tabaco.
O espectro da morte manifesta-se por aparições de fantasmas dos antepassados, chamados angã, que provocam um medo mórbido e incurável. Infrações aos "tabus" (também indicado pelo termo polissêmico pajé) podem submeter alguém a penalidades sobrenaturais. São muitos os rituais de purificação envolvendo sangue humano (awa ruwï) e sangria. Os homens que tenham matado outros, incluindo karaí, tradicionalmente mortificam seus corpos com um dente de cutia e são obrigados a dietas especiais, como durante o resguardo.
Quando da menarca (primeira menstruação), a menina é confinada num recinto fechado por cerca de 12 dias. Após sair da clausura, seus responsáveis raspam a sua cabeça; aplicam-lhe um cordão de formigas tapiís vivas (Pachycondyla commutata) na altura da cintura e do peito; e escarificam suas pernas com dente de cutia, fazendo-as sangrar. Entre os Waiãpi, a recém-menstruada (yaï-ramõ) passa por provação similar, o que sugere ser esta uma prática consideravelmente antiga, datando talvez das origens da própria família lingüística Tupi-Guarani.
A idéia de que o "sangue menstrual" (yaï) polui a sociedade é reforçada por tabus alimentares (mulheres menstruadas só podem comer, dentre os animais terrestres, a carne de jabuti); restrições de atividades (a mulher menstruada não pode trabalhar na roça, cozinhar ou dar comida a outros, nem banhar-se no rio da comunidade); e pela existência de um número desproporcional de remédios caseiros para um "fluxo menstrual excessivo" (yaï-hu). Durante o resguardo Kaapor (nino-rahã), tanto a mãe quanto o seu marido são limitados a alimentos como os da dieta da menstruação por alguns meses ou mais, na crença de que a ingestão de outros alimentos prejudica o recém-nascido.
A cerimônia mais positiva na sua cultura é a de nomeação das crianças. Trata-se essencialmente de uma afirmação da fertilidade Kaapor e da reafirmação dos laços exogâmicos entre os agrupamentos residenciais que propiciam a sobrevivência e o crescimento da população. Tendo sobrevivido ao nascimento e ao período de restrição alimentar e isolamento de seus pais, conhecido como resguardo, a criança é candidata a receber um nome. Normalmente isto é feito quando a criança já é capaz de se virar e engatinhar por conta própria, mas pode chegar a ocorrer até um ano ou mais depois do seu nascimento. Esta cerimônia não é individual, como o é o ritual da puberdade feminina, mas, ao contrário, veementemente coletiva. Várias crianças dentro da faixa etária de 1 ano ou mais recebem nomes de uma só vez. Como cada criança tem que ter padrinhos (ipai-anhang) assim como seus próprios pais presentes, a cerimônia envolve a maior festa grupal na sociedade.
Um dos pais da criança será o "dono" (-yar) do evento, e ele ou ela deve preparar o caxiri tradicional de mandioca fermentada, caju ou banana. Todos os adultos e crianças mais velhas devem bebê-lo de noite. Ao amanhecer do dia seguinte, todos penduram suas redes na maior casa da aldeia, onde os homens reclinam-se e fumam longos charutos. No quintal na frente da casa, as mães das crianças a serem nomeadas sentam-se em esteiras de bacaba e seguram seus filhos em tipóias de algodão. Todos os adultos e muitos dos jovens enfeitam-se com seus ornamentos de plumas e este esplendoroso aparato de penas vermelhas, amarelas, verdes e pretas ajuda a iluminar até mesmo as nuvens escuras que possam surgir no horizonte do amanhecer.
Logo, o padrinho de uma das crianças começa a gritar o nome que ele escolheu; este será repetido numerosas vezes pela assistência de homens e mulheres. Em seguida, o pai ou a mãe da criança anuncia um segundo nome, aquele que eles escolheram, e este também será repetido inúmeras vezes pela audiência uníssona. Então, a criança é erguida pelo padrinho, que sopra um apito de osso de gavião, o qual é preso a um pingente de penas vermelhas, azuis e pretas. Ele dança para frente e para trás com a criança aos prantos em seus braços, anunciando ao mundo o nome de uma nova pessoa Kaapor.
E assim é feito com todas as crianças e seus padrinhos, até que os novos nomes estejam bem gravados na memória coletiva. O padrinho é freqüentemente um afim ou um irmão do sexo oposto de um dos pais, de forma que é concebível a idéia de que o afilhado (ou afilhada) possa no futuro vir a desposar a própria filha (ou filho) do padrinho. Em suma, a sociedade Kaapor projeta-se para o futuro pela solene outorga de nomes. Contudo, a permanência deste ritual de renovação por muito mais tempo como parte integral de sua cultura dependerá do resultado da luta do povo Kaapor por terra e justiça.
Fonte de Informação:
William Balée
wbalee@mailhost.tcs.tulane.edu
Tulane University
setembro de 1998
traduzido do inglês por Ana Valéria Araújo
(advogada, membro do Conselho Diretor do ISA)
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