Pedro Cabrita Reis

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Artista Pedro Cabrita Reis
Biografia Pedro CABRITA REIS (1956)


Nasceu em Lisboa, em 1956. Pintor formado pela ESBAL, expõe a sua obra desde o início dos anos 80. O exercício privilegiado da pintura e do desenho, patente nas primeiras mostras do seu trabalho, foi cedendo lugar a uma ampla diversificação das técnicas e dos materiais, convocados para a criação de objectos/construções/instalações, que, no final da década, eram já a face mais conhecida da sua obra. Esta viragem não foi sinónimo de abandono dos meios de produção anteriores.

A prática sistemática do desenho permaneceu intocada - veja-se a série de auto-retratos integrados em O Rosto da Máscara (CCB, 1994) -, tal como parte significativa das obras reunidas na sua última grande exposição nacional (Serralves, 1999) veio repor valores pictóricos no seu trabalho. Seja como for, o conjunto da sua produção escapa intencionalmente a qualquer categorização disciplinar, potenciando cruzamentos de uma variedade inesgotável na produção de obras que mantêm, além disso, em muitos casos, uma relação vital com o espaço onde se instalam.

Comecemos então por assinalar que as séries dos objectos/construções /instalações são habitualmente realizadas a partir da utilização de matérias comuns no mundo que habitamos. Embora o plexiglas, o alumínio e as tintas de esmalte ou acrílicas sejam recorrentes em trabalhos mais recentes, a maioria das suas obras é realizada a partir de um núcleo vasto de materiais de construção civil, a que se somam cartões, panos, feltros, tape, etc., e um conjunto de objectos de uso quotidiano (cadeiras, jarros, cestos, lâmpadas, portas, entre outros).

Dessas matérias-primas resultam, à primeira vista, formas e situações familiares. Porém, cedo nos damos conta da sua estranheza, da provocação que nos lançam, na medida em que, embora retenham a memória da sua execução material, o comum, o habitual lhes foi radicalmente arrancado. Dito de outro modo, os seus trabalhos pertencem a um território livre da pretensa clareza de fórmulas explicativas, descritivas ou ilustrativas, e expandem, por isso mesmo, as possibilidades de construção do mundo. É o que nos mostra o primeiro grande balanço do conjunto da sua produção, realizado em 1994 pelo CAMJAP, onde este Meus pais deram-me aquilo que podiam, alma da sua diversa, de 1993, já se integrava; é o que continuam a mostrar-nos as duas recentes instalações concebidas para a 50.ª Bienal de Veneza em 2003.

Confrontamo-nos, em qualquer dos casos, com uma linguagem plástica em que a naturalização forjada dos significados readquire a sua condição arbitrária, devolvendo-nos, nas suas próprias palavras, o "genial e absoluto caos inicial" (Pedro Cabrita Reis, 1992: 148). Como o próprio afirma, é a partir deste caos que a inteligência da arte deve agir: "nas 'mãos' do artista [ele será] matéria para a permanente construção do mistério, pois a arte, ao contrário das outras formas de conhecimento, será tanto mais perfeita quanto maior for o grau de obscurecimento a que nos conduza." (idem).

Confrontamo-nos, em suma, com um universo onde, independentemente do grau de simplicidade ou complexidade, as formas arquitectadas - que podem evocar cidades, casas, janelas, portas, escadas, mesas, cursos de água, fontes, diques, etc. ou permanecer abstractas - procuram cumprir "o absoluto desejo de metáfora" (idem), obscurecendo o dado para, finalmente, o abrir num sentido indeterminado, mais produtivo e verdadeiro, porque mais poético.

Instalando um mundo, os trabalhos de Cabrita Reis iluminam a essencialidade oculta da terra que nos dá guarida, constrangendo-nos a habitá-la poeticamente. Como confessa numa entrevista concedida à Arte Ibérica (n.º 32, Fev. 2000): "Um dos meus anseios mais profundos é que, após verem uma coisa minha, as pessoas identifiquem a realidade através dos meus trabalhos. Isto é, vêem a escada, o Posto de Observação, vêem a Catedral e, depois, ao passarem por um prédio em construção numa colina, não poderão jamais desligar-se do que viram. A arte, se se pretende como meio ou instrumento para expandir a inteligência ou a percepção do mundo, tem aqui uma função unificadora."

JOANA CUNHA LEAL

fonte : http://www.camjap.gulbenkian.pt/ em 15.04.2010

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A CONSTRUÇÃO DE MUNDOS EM PEDRO CABRITA REIS

Analisar a obra de Pedro Cabrita Reis num curso organizado sob o mote da
iconografia e que apresenta, por isso, como horizonte essencial de debate as questões
ligadas à imagem e à representação pode, à primeira vista, parecer um contrasenso. Causará,
no mínimo, a todos aqueles que estiverem mais familiarizados com a sua produção artística,
alguma perplexidade, desde logo porque os objectos/construções/instalações que Pedro
Cabrita Reis fundamentalmente cria estão muito distantes das qualidades gráficas que o
conceito restrito de imagem primeiro convoca, tal como permanecem radicalmente
afastados dos modos tradicionais de representação.
Analisar a obra de Cabrita Reis num curso organizado sob o mote da iconografia
não constitui, porém, uma impossibilidade mas um desafio que julgo relevante. Relevante
porque, em primeiro lugar, nos leva a reflectir sobre os limites da pretensão
descodificadora que constituiu a base da definição disciplinar da iconografia, aprofundada
ainda na versão panofskiana da iconologia (cf. H. Damisch, 1974). Em segundo lugar
porque, por essa mesma via, nos introduz uma perspectiva sobre o grau de desestabilização
que a arte contemporânea trouxe às fronteiras conceptuais estabelecidas no território da
História da Arte e das disciplinas que com ela se interligam (incluindo naturalmente a
iconografia).
Começamos precisamente por lembrar que a iconografia fundamenta o seu quadro
disciplinar no pressuposto (historicista) de que o sentido das imagens pode ser reconhecido
e fixado, bastando para tanto conhecer o contexto em que são forjadas. Na fórmula
putativamente mais exigente da iconologia definida por Erwin Panofsky (1989 [1939]: 31-
47), contra a orientação estritamente formalista que dominou o essencial da história da
História da Arte entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, entendese
que o horizonte de significação das obras de arte é eminentemente simbólico e elege-se
como tarefa prioritária descodificar o significado que as obras encerram. Para tanto, a
interpretação histórica dos significados deveria superar os aspectos descritivos e
classificadores da análise das temáticas e dos conteúdos expressos de modo literal, i.e.
imediato, directo, para alcançar um conteúdo intrínseco, mais profundo e não imediato.
Sem se satisfazer com a identificação da passagem bíblica ou do acontecimento histórico a
que determinada imagem se refere - tarefa própria da iconografia -, a iconologia procura,
assim, desvendar o significado simbólico depositado sob o motivo expresso, depositado
sob aquilo que imediatamente nos é dado a ver.
2
Neste nível de leitura os dados últimos e essenciais que estão na base de todas as
manifestações artísticas de uma época seriam finalmente revelados, porque, pressupunha
Panofsky, cada obra encerraria "uma auto-revelação involuntária e inconsciente de uma
atitude de fundo para com o mundo" (uma atitude que, portanto, se revelaria
independentemente do artista ter ou não consciência dela)1.
Mais do que comentar a ambição da definição panofskiana, interessa aqui reter o
facto da tarefa icononológica manter intacta a motivação classificadora da iconografia. Ou
seja, a iconologia pretende enunciar/fixar aquilo que as imagens (e em particular as obras
de arte) simbolizam; pretende declarar-lhes um sentido que, independentemente da sua
profundidade, é ratificado pelo discurso da ciência e fixado como verdade, como
significado imanente e perene (i.e. não transitório).
Este paraíso de transparente correspondência entre o sentido depositado e o
sentido lido nas imagens vem sendo radicalmente posto em causa pela produção artística
contemporânea e pela reflexão crítica que se gerou em seu torno. A ruptura produzida
pelas vanguardas firmou um território artístico essencialmente orientado para a
ambiguidade e a auto-reflexividade (como nos ensina U. Eco), um território onde a
possibilidade de encontrar um sentido único (putativamente verdadeiro) não parece ser
sequer contemplada (daí também o uso recorrente do conceito de crise para designar quer a
situação da arte contemporânea, quer das disciplinas centradas na análise da produção
artística, incluindo a História da Arte).
Por outras palavras, vivemos num mundo onde as formas artísticas,
independentemente do seu grau de iconicidade (i. e. independentemente de uma maior ou
menor aproximação às imagens do mundo que nos rodeia), se afastam de uma significação
estável (ou antes, tida como verdade depositada), cuja descodificação vinha estando, já
vimos, a cargo da iconografia e da iconologia.
***

1 O "significado intrínseco ou conteúdo é apreendido pela averiguação daqueles princípios
subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação, período, classe, convicções religiosas ou
filosóficas - modificados por uma personalidade e condensados em uma obra. [...] Uma
interpretação realmente exaustiva do significado intrínseco ou conteúdo poderia mesmo mostrar
que os procedimentos técnicos característicos de um determinado período, país ou artista [...] são
sintomáticos da mesma atitude básica que é discernível em todas as outras características específicas
do seu estilo. Ao conceber deste modo as puras formas, motivos, imagens, histórias e alegorias
como manifestações de princípios subjacentes, interpretamos todos estes elementos como aquilo a
que Ernst Cassirer chamou simbólicos" (E. Panofsky, 1989 [1939]: 33). A frase mencionada no
texto é citada por O. Calabrese (1986 [1985]: 27) com base no ensaio publicado por Panofsky em
1932 ("Sobre o problema da descrição e da interpretação do conteúdo de obras da arte figurativa").
3
A ambiguidade fundamental dos objectos/construções/instalações criados por
Pedro Cabrita Reis contribui justamente para a desestruturação de um universo de
significação tomado como pretensamente estável (cristalizado). A obra de Pedro Cabrita
Reis confronta-nos, mais precisamente, com uma linguagem plástica de grande densidade
poética onde, e isto é que é importante, a naturalização forjada dos significados é superada.
Nela os significados (re)adquirem a sua condição arbitrária devolvendo-nos, nas palavras
do artista, o "genial e absoluto caos inicial" (Pedro Cabrita Reis, 1992: 148). Semelhante
operação é, sublinhe-se, absolutamente consciente: Cabrita Reis defende que é
precisamente a partir deste caos que a inteligência da arte deve agir ou, como também
escreve, "nas 'mãos' do artista [ele será] matéria para a permanente construção do mistério,
pois a arte, ao contrário das outras formas de conhecimento será tanto mais perfeita quanto
maior for o grau de obscurecimento a que nos conduza" (idem).

Aproximemo-nos um pouco do percurso e da obra de Pedro Cabrita Reis
(seguramente um dos artistas portugueses mais internacionalizados). Nasceu em Lisboa em
1956 e formou-se em pintura na ESBAL. Expõe regularmente desde o início da década de
1980, tendo as primeiras mostras do seu trabalho privilegiado fundamentalmente o campo
da pintura e do desenho. Estas fronteiras disciplinares iniciais foram, porém, rapidamente
ultrapassadas, cedendo lugar a uma ampla diversificação das técnicas e dos materiais
convocados para a criação de objectos/construções/instalações. No final dos anos 80 estes
eram já a face mais conhecida da sua obra, ainda que, diga-se, tal viragem não fosse
sinónimo de abandono dos meios de produção anteriores: por um lado a prática do
desenho permaneceu intocada em sucessivas séries de auto-retratos; por outro lado,
assistimos à reposição de valores pictóricos em parte das suas obras mais recentes
(fenómeno que voltará a ser mencionado mais adiante).
Seja como for, os objectos/construções/instalações de Pedro Cabrita Reis - e deles
nos ocuparemos daqui para a frente - escapam intencionalmente à possibilidade de uma
categorização disciplinar tradicional (pintura, escultura, arquitectura), potenciando antes
cruzamentos de uma variedade inesgotável (veja-se, por ex. The project de 2002 [esculturaarquitectura]
ou True Gardens # 1 de 2000 [pintura - escultura - instalação])2.
Parte substancial das obras produzidas mantém, para além disso, uma relação vital
com o espaço em que se instala. São obras que apropriam e metamorfoseiam o espaço, ou
território, como prefere Cabrita Reis, para o qual foram projectadas, pelo que

2 O catálogo completo de todas as obras que seguidamente se citam está disponível em Pedro Cabrita
Reis. - S.n.: Hatje Cantz, 2003.
4
habitualmente se designam como site specific - é ainda o caso de True Gardens # 1 ou de
D'aprés Piranesi (2001), I dreamt your house was a line (2003) e Longer Journeys (2003).
Mas deve sobretudo acentuar-se, voltando à perspectiva chave desta abordagem,
que as séries de objectos/construções/instalações de Pedro Cabrita Reis são normalmente
realizadas a partir da utilização de matérias e formas comuns no mundo que habitamos.
Matérias com as quais estamos sobejamente familiarizados por via do confronto quotidiano
com a paisagem urbana e com tudo o que esta tem de mais estável e de mais acidental (dos
estaleiros de obras às casas e aos jardins, dos equipamentos aos interiores domésticos, das
canalizações às portas e janelas).
Mais precisamente, embora o plexiglas e a cor das tintas de esmalte, ou acrílicas,
sejam recorrentemente utilizados em trabalhos recentes - justamente aqueles em que os
valores pictóricos são reassumidos (vejam-se os Polychrome # 2 e # 3, Cabinet d'Amateur # 2
ou, uma vez mais True Gardens # 1) -, a maioria das obras de Pedro Cabrita Reis é realizada a
partir de um conjunto vasto de materiais e elementos associados à construção civil (tijolos,
madeiras, cimento, alumínio, vidro, gesso, cabos eléctricos, tubos de canalizações, portas e
janelas etc...).
Semelhante apropriação das matérias que compõem a paisagem urbana tem o efeito
de nos reportar a um universo arquitectónico invariavelmente vernacular. A ela associa-se
ainda a utilização de outros materiais não nobres como cartões, feltros, tecidos, lâmpadas
fluorescentes ou fita adesiva, e objectos de uso quotidiano, nomeadamente em ambiente
doméstico, como cadeiras, jarros, cestos, panelas, caixas, mesas etc..., muito frequentes em
obras do final dos anos 80 e início de 90 (veja-se Meus pais deram-me aquilo que podiam, alma
da sua diversa de 1993).
Volto a acentuar que destas matérias-primas e destes elementos resultam, à primeira
vista, formas e situações familiares. Porém, cedo damos conta da absoluta estranheza destes
objectos/construções/instalações, cedo damos conta da provocação que nos lançam, na
medida em que, embora retenham a memória da sua execução material, o comum, o banal,
o habitual foi-lhes afinal radicalmente arrancado. Ou seja, a relação antes estabelecida entre
estes significantes e o seu significado foi subvertida, ou surge completamente deslocada.
Destituídas do seu sentido literal/denotativo, essas matérias várias reencontram
finalmente no trabalho de Pedro Cabrita Reis uma dimensão metafórica que escapa aos
limites da análise iconográfica (tal como foi sendo definida), ou que, mais precisamente,
implode esses limites porque abre infinitamente as possibilidades de sentido sem nunca
deixar que se fixe um significado definitivo ou mais verdadeiro.
5
Como escreve José M. Miranda Justo a propósito da condição metafórica da obra
de Cabrita Reis: "As metáforas são o modo de nos defrontarmos com o que ainda não
conhecíamos, com a abertura ao sentido, com a fome e a sede de sentido que nos assalta
para lá de todo o conhecimento razoavelmente claro. (...) As metáforas são transposições é
certo, mas não do conhecido para o conhecido. Por vezes serão do conhecido para o
desconhecido. Outras vezes serão do desconhecido para o desconhecido. Num caso como
no outro, o que importa, em primeiro lugar, é o seu efeito de obscurecimento." (2003: 143).
Donde, em vez do movimento centrípeto/concentracionário accionado pela
análise iconográfica (ou iconológica) em nome da descodificação de um significado
preestabelecido (i.e. já depositado), o que nos temos é um movimento centrífugo e
caleidoscópico, mediante o qual as possibilidades de significação se multiplicam
indefinidamente.

Vejamos mais detalhadamente algumas obras de Pedro Cabrita Reis.

1) A room for a poet, 2000
O muro de tijolo com marcas grosseiras de cimento construído a céu aberto
enquadra uma oliveira solitária e oferece duas aberturas, duas aberturas que tendemos a
identificar como porta e janela. Neste "quarto para um poeta" as pressupostas porta e
janela estão, porém, longe de cumprir a sua função ritual (ou tradicional): dão passagem
mas não dão acesso, não resguardam nem cerram. O próprio muro oferece uma condição
idêntica, agravando-a porque a rudeza da sua execução o atiraria para a esfera do
estritamente funcional, esfera a que seguramente não pertence. Uma situação agravada
finalmente pela estranha proximidade da árvore cuja sombra é porventura mais protectora
do que o conjunto edificado. A nota lírica do título - A room for a poet - oferece uma última
provocação, dilatando o imaginário ligado a este objecto simultaneamente alheio e familiar,
rude e poético, artificial e natural. Um objecto contrastante onde muros, portas e janelas
adquirem um obscurecimento fundamental que tem força de nos evocar a presença de
todos os quartos de poetas que habitaram, habitam e habitarão o mundo.

2) Una casa, 2000, Altra casa, 2000, Unframed, 2001 e 1+1, 2003
Portas e janelas vêm sendo de resto, matéria fundamental na laboração de Pedro
Cabrita Reis. Conservando invariavelmente a memória de uma vocação funcional que cruza
o dia-a-dia de qualquer um, estes elementos são explorados por Cabrita Reis de modo a
6
criar novas e insuspeitas situações de ambiguidade. Elevados sobre plintos ou convertidos
em suporte de pintura, estes objectos (por vezes mesmo objects trouvés) surgem
transfigurados, metamorfoseados, adquirindo uma condição (e um sentido) alheio ao
universo mais banal de onde provêm.

3) Blind Cities, 1998-1999
As "cidades cegas" de Pedro Cabrita Reis, realizadas a partir de 1998, colocam-nos
perante novos e agigantados paradoxos. O primeiro advém do facto de nos confrontarmos
com um empobrecimento das matérias envolvidas na sua construção: muito contraplacado,
cartão, fita adesiva, fios de telefone e alguma cor levam a maioria dos críticos a recordar
"regras, qualidades, sistemas operativos, materiais, [e] conceitos que pertencem mais ao
repertório dos anónimos construtores de favelas e de bidonvilles do que aos tratados
arquitectónicos" (Bruno Corà, 1999: 39). Nesta cidades deslocar-nos-iamos, portanto, a um
território de pretensa marginalidade estética, muito distante do contexto artístico em que as
encontramos inseridas.
O segundo e, em face da perspectiva que vimos abordando, mais decisivo paradoxo
advém da evocação da cegueira numa série de construções dotadas de janelas (ainda que
por vezes os vidros tenham a opacidade da pintura) e que evocam decididamente torres de
vigia (como aliás sucede em Olhar, olhar sempre, realizada em 2000 num mais nobre aço
inox). Como foi já amplamente notado por João Fernandes (2003), as obras desta série
transformam o espaço onde se instalam em territórios marcados pelas possibilidades de
observação que representam. Donde, a evocação metafórica da cegueira parece atingir mais
a condição do espectador do que a dos seus fragmentos de cidade, inacessíveis e
misteriosos. De qualquer modo, a provocação fundamental permanece, deixando-nos um
sentimento de estranheza absoluta em face da familiaridade destas improváveis "cidades
cegas".

4) True Gardens, 2000-2001
Os jardins de Pedro Cabrita Reis, aqueles a que chama "verdadeiros jardins", só
num primeiro momento consideram a presença natural da natureza. Justamente, a primeira
obra desta série, instalada no pátio interior do Centro de Arte de Le Crestet, em Aix-en-
Provence, consistia numa plataforma rectangular com dois painéis coloridos a tinta de
esmalte e um conjunto de nove espelhos nos quais se dá a ver o reflexo das árvores, do céu
e do próprio edifício que lhes dá guarida. No segundo trabalho dos True Gardens,
7
apresentado em Estocolmo, a ligação ao mundo exterior, bem como a presença expectável
da natureza (ainda que mantida em segunda mão, ou seja, através do reflexo dos espelhos
como na primeira obra), surge já completamente superada. O jardim de Cabrita Reis
estende-se no interior da galeria, composto por uma série de caixotes rectangulares que
envolvem as grossas colunas de suporte da cobertura (novas árvores?). Dispostos no chão
sem geometria, estes caixotes foram cobertos por painéis de vidro fosco sob os quais se
difunde o efeito das luzes fluorescentes. O terceiro dos True Gardens, apresentado em
Dijon, foi construído a partir de finas paredes de tijolo e é, como já foi notado, o trabalho
mais arquitectónico desta série (cf. W. Davidts, 2004). Ou seja, num crescendo Pedro
Cabrita Reis desconstrói a imagem (e portanto o sentido) do que habitualmente
designamos como jardim. Os verdadeiros jardins de Pedro Cabrita Reis não perderam só a
ligação com o mundo da natureza, mas repõem também a ideia da artificialidade de
qualquer acção de ajardinamento, quebrando desse modo a garantia dos conteúdos prédeterminados
e alheios a interrogações.

5) Cabinet d’Amateur #2, 2001
Em Cabinet d'Amateur # 2 a cor invade o espaço da galeria. Chega-nos numa
profusão de painéis de vidro pintados em acrílico, ordenados em grelhas seriais construídas
em metal (na realidade os suportes são portas, 33 no total). As ressonâncias mais imediatas
desdobram-se aqui entre dois pólos irreconciliáveis: por um lado, a lógica de amostragem
dos catálogos industriais; por outro a lógica cumulativa das pinacotecas e galerias
oitocentistas que o título convoca.

Os trabalhos de Pedro Cabrita Reis pertencem a um território livre da pretensa
clareza de fórmulas explicativas, descritivas ou ilustrativas. Confrontamo-nos antes com
uma constante necessidade de interrogação. Confrontam-nos, mais precisamente, com um
universo onde as formas arquitectadas, independentemente do grau de simplicidade ou
complexidade que apresentam, procuram cumprir "o absoluto desejo de metáfora" (Pedro
Cabrita Reis, 1992: 148), obscurecendo o dado para finalmente, o abrir num sentido
indeterminado, mais produtivo e verdadeiro porque mais poético(J.C. Leal, 2004: 120). Por
isso as obras de Pedro Cabrita Reis expandem as possibilidades de construção do mundo.
Pedro Cabrita Reis expande a nossa apreensão do mundo e, por consequência expande o
próprio mundo em que vivemos.
8
Esse é, aliás, o desejo do artista. Como o próprio confessa numa entrevista
concedida à revista Arte Ibérica em Fevereiro de 2000: "Um dos meus anseios mais
profundos é que, após verem uma coisa minha, as pessoas identifiquem a realidade através
dos meus trabalhos. Isto é, vêem a escada, o Posto de Observação, vêem a Catedral e, depois,
ao passarem por um prédio em construção numa colina, não poderão jamais desligar-se do
que viram. A arte, se se pretende como meio ou instrumento para expandir a inteligência
ou a percepção do mundo, tem aqui uma função unificadora."

Joana Cunha Leal
Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
j.cunhaleal@fcsh.unl.pt

BIBLIOGRAFIA
Cabrita Reis, Pedro
2000, "Realidades utópicas" [entrevista conduzida por José Sousa Machado] in Arte Ibérica.
- N.32 (Fevereiro), pp. 68-74
1992, [Sessenta e oito textos de Pedro Cabrita Reis] in Pedro Cabrita Reis. - Lisboa: CAMFCG

Calabrese, Omar
1986 [1985], A Linguagem da Arte. - Lisboa: Presença
Corà, Bruno
1999, "Pedro Cabrita Reis: Conjuntos de lugares onde o encontrar" in Pedro Cabrita Reis. -
Milano: Charta, Fundação de Serralves, pp.39-42
Damisch, Hubert
1974, "Sémiologie et iconographie" in La Sociologie de l'Art et sa vocation interdisciplinaire. -
Lisboa: FCG, 1974 (nº18 e 19 da Colóquio Artes), pp. 21-23, 29
Davidts, Wouter
2004, "Urban Eden" in www.pedrocabritareis.com
Eco, Umberto
1979, L'oeuvre ouverte. - Paris: Seuil
Fernandes, João
2003, "O construtor de lugares" in Pedro Cabrita Reis. - S.n.: Hatje Cantz, pp. 201-250
Justo, José M. Miranda
2003, "Ensaio de Vocabulário para um Discurso do Método" in Pedro Cabrita Reis. - S.n.:
Hatje Cantz, pp. 119-186

Leal, Joana Cunha
9
2004, "Pedro Cabrita Reis" in Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão: Roteiro da
colecção. - Lisboa: FCG, pp.120-121
Panofsky, Erwin
1989 [1939], "Iconografia e Iconologia: uma introdução ao estudo da arte do
Renascimento" in O Significado nas Artes Visuais. - Lisboa: Presença, pp. 31-47

fonte : http://www.pedrocabritareis.com/site/media/06_construcaomundos.pdf 15.04.2010

Fonte cda

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