Marcos Chaves

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Artista Marcos Chaves
Biografia Chaves, Marcos (1961)



Biografia

Marcos Chaves (Rio de Janeiro RJ 1961). Artista visual, arquiteto. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. É representado pela Galeria Laura Marsiaj, no Rio de Janeiro e pela Galeria Nara Roesler, em São Paulo. Forma-se em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Santa Ursula, no Rio de Janeiro. Cursa a Escola de Artes Visuais do Parque Lage - EAV/Parque Lage e o Bloco Escola, Museu de Arte Moderna - MAM/RJ. Inicia seu trabalho com instalações em 1980. Parte de sua obra se constitui de apropriações de objetos do cotidiano que, às vezes, são registradas em fotografia. Apresenta sua primeira exposição individual em 1988, na Galeria Macunaíma, Funarte, Rio de Janeiro. Em 1997, recebe a menção de honra no 4º Salão MAM/Bahia e é contemplado com a Bolsa de Artes RioArte, do Instituto de Arte e Cultura do Rio de Janeiro. Recebe o prêmio de uma viagem pelo país no 16º Salão de Artes Plásticas em 1998. Participa do Cyfuniad International Artists Workshop, Liverpool, Inglaterra, em 2001. Em 2002, apresenta trabalhos no projeto Stazione Topolò, em Udine, Itália; na 7X7 Arte Contemporânea Brasileño, em La Paz; e na 25ª edição da Bienal Internacional de São Paulo.


Atualizado em 29/08/2006

fonte Itaú em 11.01.2008


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SOBRE ARTISTA

Marcos Chaves (Rio de Janeiro, RJ, 1961). Vive e trabalha no Rio de Janeiro.

A obra de Marcos Chaves se insere em uma tradição para a qual o legado do ready made duchampiano é fundamental. Isso significa dizer que não estamos no campo do fazer artesanal, da pintura, do desenho ou da escultura. Mas sim diante de uma obra para a qual a apropriação e edição dos materiais apropriados, ou seja, já existentes, é o método que rege sua produção. As apropriações de Chaves têm como origem, na maior parte das vezes, entes da vida cotidiana. São objetos, utensílios, construções, paisagens, quase sempre ordinárias, banais, que perpassam o nosso dia a dia sem que tenhamos olhos para de fato vê-las. A operação do artista será, justamente, a de doar uma visibilidade para estas coisas coadjuvantes através da arte. Entretanto, depois de passar pelo pensamento e a intuição de Chaves - não se poderia falar aqui em mãos - tais coisas ganham um novo lugar, seus significados originais são alterados, passamos a ver o que mal víamos com outros olhos. Para isso as lentes do humor e da ironia ocupam um lugar central. Ambos são dispositivos capazes de alterar os significados correntes, nos fazer pensar de outra forma. Como parte desse processo, existe um uso todo particular da língua, o artista cria uma sintaxe própria, que se vale da ambigüidade das palavras e dos enunciados. Assim, a palavra escrita diretamente nos trabalhos e/ou os títulos das obras possuem um lugar decisivo na constituição do sentido final de grande parte das obras. Retirar-nos do embotamento causado pelo hábito, nos dando novas lentes para enxergar o mesmo de forma distinta, sinalizar que essa capacidade de transformar é mais próxima do que imaginamos, bastando mudar um ângulo ou introduzir uma outra maneira de nomear, são todas lições que ficam para quem entra em contato com a obra de Marcos Chaves.


Exposições Individuais

2009
Figuras, Bolsa de Arte de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
Retratos, Galeria Artur Fidalgo, Rio de Janeiro, Brasil
Romário com Giancarlo Neri, Galeria Progetti, Rio de Janeiro, Brasil
Frequências, Museu da Imagem e do Som (MIS), São Paulo, Brasil
Laughing Container, Zeppelin University, Friedrichshafen, Alemanha

2008
Laughing Mask, Butcher's, Londres, Reino Unido
É da sua natureza, Oi Futuro, Rio de Janeiro, Brasil
Galeria Blanca Soto, Madri, Espanha

2007
Galeria Nara Roesler, São Paulo, Brasil

2006
Eclético, Galeria Sopro, Lisboa, Portugal

2005
Laura Marsiaj Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, Brasil

2004
Logradouro, MariAntonia, Centro Universitário da USP, São Paulo, Brasil
Funceb, com Geraldine Lantieri, Buenos Aires, Argentina

2003
Loop, Espaço Capacete, 4 individuais com Brice Delsperger, Pierre Bismuth e Tiago Carneiro, Rio de Janeiro, Brasil

2002
Galeria Nara Roesler, São Paulo, Brasil
Museu Vale do Rio Doce, Vitória, Brasil
Galeria Arte Futura, Brasília, Brasil
Logradouro, Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro, Brasil

2001
Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro, Brasil
Paço das Artes, São Paulo, Brasil

2000
Galeria Sergio Milliet, Funarte, Rio de Janeiro, Brasil
Eclético, instalação no Castelinho do Flamengo, Rio de Janeiro, Brasil

1995
Paço Imperial, Rio de Janeiro, Brasil

1994
Galeria Sérgio Porto, Rio de Janeiro, Brasil

1992
Centro Cultural São Paulo, São Paulo, Brasil

1990
Galeria Sérgio Porto, Rio de Janeiro, Brasil

1988
Galeria Macunaíma, Funarte, Rio de Janeiro, Brasil


Exposições Coletivas

2009
After Utopia, Pecci Center for Contemporary Art, Prato, Itália
Die Tropen. Iziko South African National Art Gallery, Cidade do Cabo, África do Sul
The Fool, Northern Gallery for Contemporary Art, Sunderland, Reino Unido
Nús, Galeria Fortes-Vilaça, São Paulo, Brasil

2008
Travessias Cariocas, Caixa Cultural, Rio de Janeiro, Brasil
Die Tropen. Ansichten von der Mitte der Weltkugel, Martin-Gropius-Bau, Berlim, Alemanha
Festival della Criativittà, Florença, Italia
Manifesta7 - The European Biennial of Contemporary Art, Bolzano, Itália
Intervenções no Morro da Conceição. A Gentil Carioca/IPHAN, Rio de Janeiro, Brasil
Mão Dupla, Movimento/Identidade, SESC Pinheiros, São Paulo, Brasil
Parangolé. Fragmentos desde os anos 90 em Espanha, Portugal e no Brasil, Museo Patio Herreriano de Valladolid, Espanha
Trópicos, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, Brasil
+40º-30º, Vantaa Art Museum, Helsinki, Finlândia

2007
Passion of Mankind, Lulea Summer Biennial, Suécia
All About Laughter - Humour in Contemporary Art, Mori Art Museum, Tóquio, Japão
Itaú Contemporâneo: Arte no Brasil 1981-2006, Itaú Cultural, São Paulo, Brasil
Trópicos, Centro Cultural Banco do Brasil, Brasília, Brasil
4ª Mostra Latino-Americana de Artes Visuais - VentoSul, Museu de Arte Contemporânea do Paraná, Curitiba, Brasil

2006
Zeitgenössische Fotokunst aus Brasilien, NBK, Berlim, Brasil
STOPOVER, Fri-Art, Centre d'Art Contemporain de Fribourg, Suíça
Paralela 2006, Galeria Nara Roesler, São Paulo, Brasil
10 + 1: Os Anos Recentes da Arte Brasileira, Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil
Um Século de Arte Brasileira, Coleção Gilberto Chateubriand, MAM-RJ, Rio de Janeiro, Brasil
Trem de Prata, Museu Imperial, Petrópolis, Brasil

2005
Art & Book, Son Projects, Barcelona, Espanha
Homo Ludens, Instituto Itaú Cultural, São Paulo, Brasil
Parrilla, Centro Cultural Matucana 100, Santiago, Chile
Discover Brazil / The Brazilian Art Project, Ludwig Museum em Koblenz, Alemanha
O Corpo na Arte Contemporânea Brasileira, Instituto Itaú Cultural, São Paulo, Brasil
IV Bienal do Mercosul, Porto Alegre, Brasil
On Leaving and Arriving, Temporary Contemporary Space, Cardiff, Reino Unido
Espace Urbain X Nature Intrisèque, Espace Topographie de L´Art, Paris, França
Loop Videoart Fair, Barcelona, Espanha

2004
Futuribiles, ARCO´04, Galeria Nara Roesler, Madri, Espanha
Imagem Sitiada, SESC Copacabana, Rio de Janeiro, Brasil
Paralela 2004, São Paulo, Brasil
Terras en tránsito: paseos por el arte audiovisual contemporaneo de Brasil, Museo Rufino Tamayo de Arte Contemporáneo, México
Visões Espanholas, Poéticas Brasileiras, Conjunto Cultural da Caixa, Brasília, Brasil

2003
Ordenação e Vertigem, Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo, Brasil
ArteFoto, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro e Brasília, Brasil
FotoRio, Laura Marsiaj Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, Brasil
Bandeiras do Brasil, Museu da República, Rio de Janeiro, Brasil

2002
XXV Bienal Internacional de São Paulo, Brasil
"7X7"Arte Contemporaneo Brasileño, La Paz, Bolivia
Stazione Topolò / Postaja Topolove, Udine, Itália
Love's House, Hotel Love's House, Rio de Janeiro, Brasil
Morro/Labirinto, Goethe Institute e Paço Imperial, Rio de Janeiro, Brasil
Panorama da Arte Brasileira, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e da Bahia, Brasil

2001
Panorama da Arte Brasileira, Museu de Arte Moderna, São Paulo, Brasil
Mistura + Confronto, Central Elétrica do Freixo, Porto 2001, Cidade do Porto, Portugal
Cyfuniad 2001, Plas Caerdeon, Liverpool Hope College, País de Galles, Reino Unido

2000
...Sabotage..., Verein Shed im Eisenwerk, Frauenfeld, Suíça
Palavraimagem, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Brasil

1999
Calming the Clouds, Stiftelsen3,14, Bergen, Noruega
V Salão MAM-Bahia, Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador, Brasil
Phillips Eletromídia da Arte (exposição virtual nos painéis eletrônicos das principais cidades do Brasil), Brasil
Objeto anos 60/90 - Cotidiano/Arte, Itaú Cultural, São Paulo, Brasil
Novas Aquisições na Coleção Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, Brasil

1998
Mercoarte, Mar del Plata, Argentina
XVI Salão Nacional de Artes Plásticas, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, Brasil

1997
IV Salão MAM-Bahia, Museu de Arte Moderna, Salvador, Brasil
I Bienal do Mercosul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
Escultura Plural, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro e Salvador, Brasil

1996
Mensa/Mensae, Galerias da Funarte, Rio de Janeiro, Brasil

1995
Esculturas, Paço Imperial, Rio de Janeiro


Projetos Especiais

2006
Teorema, cenário-instalação Cia de Dança Marcia Rubin, CCBB-RJ, Brasil

2005
Connecting Flights, Monkeytown, NY, EUA
Ensaio.Hamlet, cenário-instalação, Moscou/ Barcelona/Paris/NY, Rússia/ Espanha/ França/ EUA
Multiplicidades, Museu Telemar, Rio de Janeiro, Brasil

1998
O Gato subiu no Telhado, instalação no Parque das Ruínas, Rio de Janeiro, Brasil

1996
Livro Abrigo, instalação na Livraria Dantes, Rio de Janeiro, Brasil


Prêmios

2009
Espírito Santo Investment Award, Brasil

2006
Prêmio Universidade Estácio de Sá, Brasil

1998
XVI Salão Nacional de Artes Plásticas, Prêmio Viagem pelo País, Brasil

1997
IV Salão MAM-Bahia, Menção Honrosa, Brasil




TEXTOS CRÍTICOS

Como a primeira vez
Moacir dos Anjos - 2007

Em trabalho feito ainda em 1997, Marcos Chaves apresentou fotografia colorida de conhecida paisagem do Rio de Janeiro - o Pão-de-Açúcar observado do mirante Dona Marta, imagem largamente veiculada em cartões-postais - sobre a qual apunha a frase eu só vendo a vista, escrita em letras brancas no interior de tarja preta. Condensava, de modo assim tão simples, um dos mais distintivos traços de sua obra: sua capacidade de olhar o mundo por meio de humor atento e ácido e de, por tal procedimento, desalojar da percepção rotinas e hábitos que embotam o conhecimento de algo que não se conhece ainda. Ao afirmar que a ele não interessa vender sua cidade - mas tão somente disseminar, por meio do sistema de difusão da arte, a sua exuberante paisagem -, denuncia, subliminarmente, a ação corrupta e predadora de outros, que gradualmente destroem, nela, a possibilidade do convívio em festa ou sossego. Várias outras vezes, desde então, o artista tem confirmado o desejo de enxergar o entorno vivido de maneiras diversas, valendo-se, para tanto, da subversão de pontos de vista consagrados, sejam eles físicos, culturais ou políticos. E o fato de haver outros sentidos, que não o aqui apontado, igualmente possíveis para esse trabalho, só reforça a vontade, nele implícita, de evocar a multiplicidade de olhares.

A apropriação de objetos, imagens e estratégias pertencentes ao repertório da vida urbana e cotidiana não só integra como funda o trabalho de Marcos Chaves. Em ocasiões, se atém a fotografar o que já está em volta e, somente por o apresentar de outro jeito que não o usual, desvela significados que o olhar comum não mais discerne, anestesiado que está pelo excesso de informações que o tempo todo acolhe. Na série Buracos, por exemplo, registra formas de sinalização de buracos de rua criadas por moradores anônimos de cidades brasileiras, levados a tanto pela descrença na capacidade de o poder público sanar tão básica falta. Ao apresentar, em fotografias, essas construções feitas de detritos urbanos diversos, o artista as inscreve, entretanto, em um campo de significação visual que lhes confere, além da potência descritiva de um fato social, um valor estético já acordado. Em outro conjunto de fotografias, Marcos Chaves constrói e oferece um ponto de vista idiossincrático de ornamentos estatuários que reproduzem, sob códigos construtivos ecléticos, corpos humanos ou suas partes. Antes de os recriar em imagens, porém - e de modo distinto da série Buracos -, intervém em tais objetos e acentua a maneira irônica e singular com que os enxerga, valendo-se, para isso, de maquiagem e adendos diversos, tais como cílios postiços, máscaras e próteses dentárias. Em vez de paralisar o fluxo da vida, a fotografia opera, aqui, como registro da dinâmica efêmera que o artista concede à representação do mundo esculpida em pedra. Reafirma, nesses trabalhos, a crença de que o mundo pode ser observado e entendido a partir de pontos de vista múltiplos, ou que nada é estável o suficiente para não estimular sentidos e mente de diferentes formas.

É em busca desses estímulos que Marcos Chaves não só deambula por ruas como também freqüenta feiras de objetos usados, descartados por seus proprietários por supostamente não lhes terem mais serventia. Por meio de fotografias que registram a localização específica de badulaques quaisquer dispostos no chão ou em tabuleiros, exercita o poder que um ponto de vista qualquer tem de conferir significados àquilo que, por desatenção ou desinteresse, pode não ser sequer notado por outros. E aos sentidos que imprime e aponta associa, invariavelmente, o riso da surpresa. Não por acaso, escolhe e captura, em uma dessas visitas, a imagem de um rádio feito de linhas retas bem ao lado da reprodução, menor e em gesso, de uma igreja barroca, outorgando àquele a idéia de um edifício modernista gigantesco. Também reveladora das relações sempre novas que busca em um repertório comum de coisas são as imagens fotografadas de um Buda que serve de suporte a um par de óculos escuros ou de um Batman sobre o qual foi posta uma pequena rede, imobilizando-o para além de seus extraordinários poderes. São eleições que exemplificam a potência cognitiva que há em enxergar com atenção e afeto mesmo as coisas miúdas e toscas.

Tomando individualmente de vários desses objetos banais achados em feiras, o artista examina, com curiosidade e interesse, as inúmeras perspectivas que oferecem ao olho. Uma vez mais através da fotografia, Marcos Chaves imobiliza apenas, contudo, a visada capaz de subverter o entendimento canônico de cada um deles, tornando obsoleta sua classificação rígida na ordem das coisas. A imagem de um suposto santo ou monge estendendo a mão a prováveis discípulos pode, por meio de tão simples procedimento, parecer querer, ao contrário, afastá-los a todo preço. Do mesmo modo que a imagem de um cão ganha feições demasiado humanas e sérias quando fotografada de um ângulo preciso. Estratégia que também converte, em outro exemplo possível, o inocente olhar de um patinho em convite à aproximação erótica e que, em outras situações, torna mesmo difícil discernir o que são, afinal - em natureza ou uso -, os objetos registrados dos pontos de vista que o artista privilegia. Evocando, em tais fotografias, o ambiente ruidoso do mundo, a Marcos Chaves interessa, sobretudo, a disponibilidade para ver o que é dado a todos - a vida ordinária - como se fora sempre e de novo a primeira vez.




Quando o olho ri, ou vice-versa
Adolfo Montejo Navas - 2002
XXV Bienal Internacional de São Paulo

Tristeza demasiada ri. Riso demasiado chora
William Blake

Para quem não conhece, mas também para quem conhece bem a obra anterior de Marcos Chaves (Rio de Janeiro, 1961), construída sempre sobre os parâmetros da apropriação e da intervenção, a chegada desta obra à Bienal não deve deixar de surpreender, pois a reconhecida chave do humor de seu trabalho, como recurso sinônimo de linguagem, aqui não se apresenta só como elemento, senão como fundamento, como uma declaração estética. O que à vista da seriedade de grande parte da arte última –às vezes de uma sagramentação conceitual que dificulta até o passo do ar– é algo mais que oportuno, faz que seja um trabalho mais procedente do que nunca.

Como não podia deixar de ser, Morrendo de rir é um trabalho fronteiriço não só pela sua natureza mista e pela criação de um espaço híbrido, como também pela semântica não delimitada das imagens: de dor, de grito, de gozo? Marcos Chaves tem escutado este paradoxo intrínseco do riso –cujo extremo é a gargalhada– tão “essencialmente humano” e “essencialmente contraditório”, segundo confessava Baudelaire, para fazer una verdadeira instalação-colagem, donde as partes da obra são superpostas, ligadas como se fossem camadas, também levadas a seu extremo: silêncio, imagem, espaço e riso.

Se um dos sonhos reconhecíveis das instalações é sua aproximação à vida, a questões da condição humana, aqui as duas partes que há nesta obra se fundem numa terceira que é o público, como se fosse um “fio terra”. De fato, o equilíbrio/diapasão desta instalação visual-sonora ou, dependendo da ordem que o visitante acione, sonora-visual, repousa nesse triângulo: as imagens do artista-as gargalhadas-os visitantes. Devido a esta estrutura da obra, os visitantes se convertem em mediuns, pois são eles quem sintonizam a gargalhada visual e a sonora, com o acrescento da sua, muito possivelmente. Os espectadores são os que ativam a obra, sua seqüência. Uma seqüência, aliás, que nunca está parada, tanto pelo movimento da imagem da boca-gargalhada, como pelo o som que colabora como movimento: a imagem remite para uma trilha e o som se faz imagem.

O silêncio oficial da arte se pode quebrar com a obra, quando pessoas rindo transgridam seu espaço sonoro, e até a própria narração, pois a obra não é estática, como podem enganar as fotografias aqui objetualizadas, é continua: se refaz em cada visitante que chega, em cada riso ou gargalhada nova, como um moto-continuo da obra, onde se pode descobrir um heterodoxo e vivo componente minimal, pois ainda que o motivo se repita –a forma dificilmente–, às vezes o efeito e a causa podem alterar-se nela. Assim, se a metade da obra é do domínio do público, é porque é ele quem fala a última palavra, ou melhor dizendo, a última gargalhada, já que a obra tem essa vontade de ensaio aberto, esse gume.

Morrendo de rir faz parte de um vocabulário artístico como o de Marcos Chaves, cuja maior figura continua sendo a ironia: da arte, do espaço da arte e do mesmo artista; e aí estão os jogos de formas que se podem intuir do riso e sua gargalhada, como precisamente o contrário do quadrado da sala e dos próprios puffs, ou as amontadas imagens do rosto do artista, como o maior exemplo para equacionar o campo de tensão de um trabalho que se aproxima a essa vertente da arte acústica, mas que sobretudo põe em pane alguns de nossos créditos estéticos, pela junção irônica do olho e o ouvido sobre um título que promete sua parte



Apropriação e Memória
Fernando Cocchiarale - 2001

Nascido da apropriação de imagens e de objetos cotidianos, o trabalho de Marcos Chaves inscreve-se num projeto estético alternativo à produção de formas e ao fazer manual, característicos das linguagens convencionais da arte (pintura, escultura, desenho e gravura).

A potência estética da apropriação e da combinação de utensílios da vida diária foi legitimada pelas práticas renovadoras de alguns artistas, ainda nas primeiras décadas do século XX. Colagens e assemblages cubistas, o surrealismo, o dadaísmo e, particularmente, as propostas de Marcel Duchamp (readymade) e de André Breton (abjet trouvé) incorporaram a apropriação de objetos ao repertório da criação artística. Tal procedimento, até então inaceitável, passou a ser tolerado por setores da crítica e do mundo das artes, embora seguisse incompreensível para a maioria.

Talvez por conta dessa incomunicabilidade tenham sido necessários cerca de cinqüenta anos até que a apropriação de objetos e de materiais não artísticos se tornasse, a partir da pop art, do minimalismo, da arte povera e da arte conceitual, um método freqüente da produção contemporânea. Para muitos artistas, o sentido da criação migrou da produção artesanal das obras para suas idéias e atitudes.

No caso de Marcos Chaves, a coleta e a combinação dos objetos é fundamental. Feita em função de idéias prévias, na rua ou em brechós, essa coleta, quase sempre de refugos do consumo urbano (seja pelo desgaste provocado pelo uso, seja pela configuração precária da reciclagem típica das camadas sociais mais pobres) determina a poética de Chaves.

O artista, porém, não se restringe à apropriação de utensílios e de imagens preexistentes aos trabalhos. A combinação dos objetos entre si e com imagens fotográficas jamais pretendeu resultar numa composição formal e perene como a da escultura, que tem uma estrutura fixa. Antes concebida (mentalmente) do que produzida (materialmente), ainda que em certos casos possa ter sido deflagrada por alguns dos objetos coletados, a conexão dos componentes das obras de Marcos é feita pela disposição dos objetos no espaço expositivo. Mas também, e talvez sobretudo, por meio dos irônicos nexos estabelecidos pelas palavras grafadas nas próprias obras ou registradas nos títulos dos trabalhos. Chaves cria uma sintaxe sem regras prévias que empresta sentido estético ao conjunto de sua produção.

As imagens fotográficas agora expostas foram feitas a partir do trabalho de Marcos Chaves na mostra Eclético, quando ele e Ana Vitória Mussi, separadamente, criaram seus sites specifics, no Castelinho do Flamengo.

Todos os elementos essenciais de sua poética, exceção feita à palavra (que aqui, curiosamente, desempenha um papel secundário), aí estão: o ecletismo da arquitetura, as esculturas estucadas nas paredes, as maquiagens e demais enfeites usados sobre as estátuas do lugar são similares, no caráter e no método (jamais na configuração) a todos os outros por ele trabalhados.

Petrificadas na frágil materialidade do papel fotográfico, estas imagens registram a efêmera intervenção do artista. A imóvel eternidade das estátuas do Castelinho do Flamengo, perturbada pela guerrilheira ação de Marcos Chaves, viu-se temporariamente interrompida (entre 18/10 a 19/11 de 2002). Por apenas um mês, elas foram inscritas no fluxo da vida: usaram maquiagem e adornos, chamaram o olhar do outro pela novidade. Hoje, sobrevivem apenas nos fantasmas de luz, sombra e cor contidos na memória das fotografias.



Chaves para Leituras
Ligia Canongia - 2000

“É sempre desejável que se tenha duas idéias – uma para destruir a outra”.
Braque

“A forma não acompanha a idéia. Porquê ?” (1) – desabafou, um dia, Cézanne a Joachim Gasquet. E, exasperado, gritava e atirava os pincéis para o alto.
Tudo constituía-se na angústia de atingir a comunhão perfeita entre a imagem plástica e a imagem mental. A questão era de como compor uma visão intelectualizada do mundo que pudesse dar conta da aparência das coisas, de como projetar na tela a inscrição mental da realidade, como chegar a uma percepção “verdadeira” do mundo, filtrada pela visão particular do artista.
Essa pergunta – a respeito do ajuste da idéia à forma – parece ter dado origem às pesquisas de Cézanne quanto a uma representação que não mais se apoiasse apenas nos dados da natureza, tornando-se, antes, uma especulação do espírito, criação puramente intelectual. Cézanne queria, de fato, atingir as estruturas implícitas nas aparências, chegar à ossatura das coisas. Dizia ele: “pintar não é copiar servilmente o objetivo” (2).
Mesmo os impressionistas, antes dele, e detonando um processo que iria percorrer toda a modernidade até a era contemporânea, já haviam tentado dissolver a separação entre o que é visto e o que é representado. Para os modernos, a pintura naturalista não era nada naturalista, uma vez que representava por meio de uma convenção geométrica, euclidiana, totalmente artificial. Traduzir o quê e como realmente se vê, essa era a questão. Os impressionistas, como Cézanne, optaram por priorizar a lógica do sujeito que vê, em detrimento do objeto visto. E isso não deixa de ser uma recusa do objeto, uma maneira de fazer ascender a idéia sobre a forma.
Mas, foi Duchamp quem elevou a questão aos limites que hoje conhecemos. Um quarto de século mais tarde, ele eliminou a pergunta de Cézanne, suprimindo sumariamente a forma. Restou a idéia. Como costumava dizer, não há solução, porque não há problema. Submeteu, então, o mundo da representação ao mundo da idealidade pura, tornando-se o mais platônico dos artistas da modernidade.
A materialização da Idéia fundou a abstração, fundou o readymade duchampiano, fundou a Pop e está na base de grande parcela da produção contemporânea, aquela que prescinde dos elementos sensíveis e elege os dados intelectuais como fundamento. E nesse filão foi, sem dúvida, a arte conceitual a que levou os níveis dessa intelectualidade a instâncias insuperáveis.

Quem poderia, nos dias de hoje, lidar tão somente com o sensível imediato? Quem se atreveria a revogar a conquista da lógica conceitual sobre o mundo da matéria ? É difícil imaginar que as sensações puras dessem conta da realidade complexa que vivemos. A habilidade manual e a tela convivem agora com objetos já tomados diretamente do real, já produzidos, e os suportes de trabalho se diversificaram. A plasticidade “artística” confunde-se com o cotidiano, com a vida banal, e o fenômeno também não é novo; remonta igualmente aos tempos modernos e ao advento da indústria. Quando Marcel Duchamp propôs o readymade, dissociou inteiramente a questão da plasticidade da noção de arte, e tornou caducas todas as práticas que ainda preservavam algum ideal de beleza, em seus termos clássicos. Ao belo e ao bom gosto, reagiu com a indiferença. Dividiu, com a indiferença, o mundo da arte em duas partes: antes e depois do readymade.
O que faz um trabalho ser uma obra de arte ? perguntava-se Duchamp. Para ele, não era necessário o sentido de criação, em que o artista tem pleno controle sobre o fazer. Um ato de seleção seria suficiente para instituir o objeto selecionado na esfera da arte; na seleção estava a “criação”, pois ali residia já a idéia. Naquele momento, Duchamp dava à forma o caráter de acidente, desqualificando-a .
O trabalho de Marcos Chaves pertence a essa linhagem histórica; à linhagem das obras que vieram se interrogar sobre a qualidade e a função do objeto de arte, dando a ele cada vez mais o valor de pensamento e menos o de forma sensível: um objeto, portanto, mais ético do que estético. Ou melhor, à linhagem daquelas obras que ajudaram a transformar a própria noção do que seria “estético”. O que sobra do readymade senão seu enunciado ? O que o mantém ancorado no mundo da arte, se nega a própria arte, enquanto formulação sensível do mundo ? O readymade devassou o cul–de-sac dos caminhos da pintura, culminado em Malévich; declarou o fim do processo artístico como fazer, como habilidade e virtuosismo. O sentido do trabalho manual perdeu sua razão de ser no universo das técnicas mecânicas. E, derrotado o trabalho manual, restou a arte como articulação puramente mental, sujeita à inteligência, mais do que aos sentidos. Duchamp diria que, se a máquina pode fazer, tudo o que nos sobra é escolher dentre o que está feito, e aí não há mais lugar para a contemplação e a beleza. Caberia ao artista recolher-se à condição do pensador que comenta o mundo, elegendo coisas desse mundo dado. O ato da seleção sendo o bastante para interpretar e abrir novas significações para a realidade. Uma operação tão simples conteve uma radicalidade tão grande a ponto de modificar o destino da história da arte e vir apresentar-se, fresca e vigente, em nossos dias.

Marcos Chaves certamente considera o potencial aberto pelo readymade e sabe de seus desdobramentos no período contemporâneo. Não está interessado no produto formal, no objeto “artístico”, na esteticidade. Nem de longe cogita a renovação do belo ou do mítico. Construir a obra de arte pode ser extrair um objeto comum de seu ambiente funcional, combiná-lo a outros, mudar seu contexto lógico, acrescentar palavras ou outros meios vindos de fora da esfera estrita da visualidade, jogar com as articulações mentais, com o humor, com o acaso. Esses são os seus procedimentos “estéticos”.
Como o readymade de Duchamp, o trabalho de Chaves persegue o caráter disjuntivo das coisas que saem de seu meio e função originais. São objetos que interferem sobre a ordem institucional, surpreendendo, nas coisas simples, valores que a convenção dissimulava. Faz deslocamentos imprevisíveis e constrói assemblages com tom de paródia, destilando aí a sua observação aguda sobre o mundo que o cerca, e não poupando nenhum segmento; dos produtos tecnológicos ao lixo.
As coisas de que se apropria, na maioria das vezes, são produtos de consumo popular. Faz parte das preocupações do trabalho observar não apenas a estética que é dirigida às grandes massas e por elas absorvida, como ainda as manifestações que partem naturalmente do povo, do meio urbano e do comércio do mau gosto. Esses produtos, paradoxalmente, acentuam a força do comentário “culto” da arte, e ajudam o artista a enfatizar o tom jocoso de certas associações. O humor entra aí como uma lâmina fina que critica o lugar do senso-comum, da uniformização e da falta de discernimento no consumismo “selvagem”. O humor, porém, é mais do que isso: intervém sobre o significado original do objeto e enxerta outro por um movimento imprevisto, um desconcerto, uma piada. O humor abre para uma interpretação que se opõe diametralmente à banalidade do objeto, dando-lhe, ao contrário, originalidade . De um lado, temos uma operação que satiriza o kitsch e o consumo, através da apropriação dos mesmos produtos que os alimentam, e, por outro, uma operação que os integra ao mundo do “refinamento” intelectual da arte. O humor, segundo Marcos Chaves, “é uma forma de tirar a tragicidade das coisas”, de olhar o mundo de outra maneira, menos fatal. Já Duchamp, considerava que apenas uma idéia “divertida” poderia interessá-lo, porque minorava o sentido da “responsabilidade”. Operações que se confundem, de certa forma, com o humor negro, que tira do contexto sério a sua seriedade, a sua densidade trágica, para tentar torná-lo simplesmente “divertido”. Em Marcos Chaves, essa conotação pode chegar, inclusive, a assumir tons de crueldade, mas uma crueldade que se esconde e se dilui através de uma nota humorística discordante.

O que também aproxima Marcos Chaves do grande mestre Dada é a impessoalidade. Embora a presença do sujeito-artista se manifeste, nos atos de escolha, na articulação das partes e dos sentidos, nas atitudes de intervenção sobre a realidade, não é um sujeito lírico, com seu drama existencial. É o sujeito intelectual, regido pelo pensamento. Mas, note-se que é uma inteligência intuitiva, que não reduz o pensamento à razão cartesiana, indutiva, ao contrário, dá elasticidade ao raciocínio pela intuição. O sujeito tenta se ocultar mesmo na inserção de enunciados verbais que poderiam parecer, à primeira vista, opiniões. Na verdade, essas inserções também são meros lugares-comuns, frases repetidas por gerações, como não falo duas vezes, ou frases comerciais, como eu só vendo a vista, tão readymades quanto os objetos. É claro que tais enunciados apontam para direções múltiplas, quando articulados no contexto da obra, que, de resto, mantém-se inserida no campo visual, e corresponde a um conjunto visivo onde outras matérias estão em jogo. Interessa observar que a impessoalidade de Marcos Chaves encontra correspondência na obra de Duchamp na medida em que sua obra também procura ser deliberadamente objetiva, embora nunca tão “indiferente”. Obras como Pharmacie, 1914 – nome dado a uma gravura popular tomada como readymade por Duchamp, não tem a menor relação com o título. A idéia era exatamente explorar esse non-sense, essa obscuridade. Já as inscrições verbais de Marcos Chaves têm contato com os elementos visuais, e mesmo que leiam ao avesso ou de forma oblíqua, existe correlação entre as palavras e as coisas, elas estão ali para produzir sentido. No fundo, a obscuridade absoluta não havia nem mesmo em Duchamp, e ele sabia disso. Embora buscasse não estabelecer relações possíveis ou torná-las tão metafóricas que quase inatingíveis, ele declarou, a respeito da justaposição palavra/coisa: “Eu esperava, evidentemente, que tudo não tivesse sentido, mas, no fundo, tudo acaba por ter algum” (3).
Chaves explora as extensões possíveis dos significados das coisas e das palavras. É como se as tomasse nas mãos e as lançasse para cima como dados, para que revelassem, ao cair, novos números, combinações sempre diferentes a cada vez. São justaposições, associações, aproximações que buscam tatear virtualmente a infinidade de mundos potenciais em um só fato plástico. Ele trata o objeto da arte como Lacan tratou a cadeia dos significantes verbais. Uma enorme gama de significados pode estar aberta a partir de um único significante visual, que é a obra. Ela, a obra, será para o artista um mero veículo, apresentado em sua significância latente. Algo que se expõe como índice, não como coisa fechada; que comporta possibilidades relativas de decodificação, como a difundida noção de “obra aberta” de Umberto Eco, que ajudou a formar a geração do artista.
O trabalho não falo duas vezes (1996) é um exemplo de como as palavras podem assumir significados multidirecionais, e a atividade “plástica” ser apenas residual. A obra resume-se a uma placa de vidro transparente colocada a certa distância da parede. Na placa está escrito “falo duas vezes” e na parede fica, sozinho, o “não”. Esse descompasso nos planos onde os termos estão inscritos, apesar da distância ser mínima e reduzida pela transparência da placa, é fundamental, e aí reside toda a diferença. Quando olhamos o trabalho, lemos imediatamente a frase inteira e unimos as partes que estão separadas. Mas a projeção da sombra do enunciado que está na placa – “falo duas vezes” – surge na parede como um fantasma, que superpõe uma afirmação diferente, pois, ao repetir o “falo duas vezes” duas vezes, nega o enunciado inteiro original. Apresenta a afirmação como mentira, pois faz o sujeito que fala, falar duas vezes. O “não” é trazido para um plano onde ele não está, e parece que apenas na placa lemos a afirmação inteira, que é por sinal uma negativa; enquanto que o que estava apenas na placa parece ser o que está na parede, sendo essa projeção em sombra a negativa daquela afirmação. Com uma simplicidade imensa, a obra articula um nível de complexidade extraordinário. E carrega ainda outras implicações. Uma das hipóteses é a de que frases chavões, de uso desgastado, são, como já dissemos, tão readymades quanto objetos, e podem passar para o domínio do imprevisível pelo simples deslocamento de contexto, ou por alterações nas formas de sua presentação. Há ainda a referência ao “falo” como figura sexual, e esse dado não é nada desprezível na obra de Marcos Chaves, toda ela permeada pela sexualidade. Só que o “falo” não tem tanto uma conotação sexual nesse trabalho quanto a conotação do “poder”, que ele representa. E lembremos que normalmente a frase “não falo duas vezes” é proferida em situações em que alguém quer mostrar autoridade. O trabalho de Chaves tem o poder como alvo de sua ironia, e a idéia de poder pode ser desdobrada na idéia de convenção. Ora, a frase “não falo duas vezes” já se tornou tão convencional que, via de regra, quem a profere não se propõe verdadeiramente a cumpri-la. Por extensão, a convenção aparece como mentira, falsidade, artifício que encobre a veracidade das coisas. E teria então a arte a capacidade de garantir verdades ? A ambigüidade do trabalho de Marcos Chaves prolonga-se nesse campo, não poupando a si mesmo. Afinal, Picasso já dissera, em 1923, que “do ponto de vista da arte, existem somente formas que são mentiras mais ou menos convincentes”. (4)
Outro trabalho que mostra a inteligência dessas articulações chama-se come and watch me (venha e veja-me), 1997, com operação similar. A inscrição da frase é sobre espelho e quando o espectador se aproxima, atraído pelo convite, só vê a si mesmo, refletido no espelho. Aquele que chama para ser visto não é visto, o visto é aquele que vê. Além disso, a afinidade de sons, levando a prolongamentos semânticos e à criação de ambigüidades, é sempre uma preocupação do trabalho, e “come” (venha) tem a mesma pronúncia em inglês que “cum” (goze) e pode desdobrar a significação para “goze e veja-me”, numa situação em que o voyeur e o narcisista se encontram, remetendo novamente ao espelho.
A tentativa de relativizar ou multiplicar a significação e a decodificação faz parte da matéria mesma do trabalho, de sua estrutura. Desde o início da carreira, em meados da década de 80, Chaves já criava situações ardilosas para a leitura da obra. Hanged Man, 1987, é outro exemplo. O desenho/colagem constitui-se das palavras “hanged man” (homem pendurado) escritas em cima, com o “A” de “man” invertido, uma letra “O” colocada à esquerda no meio da folha, a letra “E” à direita em igual posição, e a letra “S” embaixo. No centro, um pedaço fino de madeira, levemente inclinado, atravessa o papel.

O homem pendurado é uma carta de baralho do tarô, onde o homem aparece preso pelos pés. Aquele que é fadado a viver de cabeça para baixo, nunca sabe se é ele ou o mundo que está invertido, ou mesmo se é essa a situação normal, fora de um eixo conexo. Desenvolvendo a idéia, Marcos Chaves coloca o “N” contido na própria palavra “hanged” como o ponto Norte, e sinaliza as outras direções com as demais letras presentes: “O” (oeste), “E” (leste), “S” (sul). A madeira inclinada funciona como o ponteiro de uma bússola, que une o Norte ao Sul. Ora, trata-se de referência a uma convenção científica e internacional que orienta o sentido do espaço, mas que, no trabalho, é relativizada pelo olhar daquele que vê distintamente as direções, e que, por ver o mundo de forma invertida, inverte automaticamente o sistema.
Esse trabalho, pontual, já revelava a multiplicidade de conexões cabíveis a partir de extrema economia de dados, assim como o espírito de armadilha criado para a decifração. Revelava ainda a agilidade mental do artista, sua capacidade de articular jogos entre palavras e coisas, e o tipo de relações que elas estabelecem entre si na composição da imagem. Apontava também para a complexidade semântica que tais imagens podem engendrar, apesar de sua aparência simples e despojada.
Há sempre possibilidade de dupla leitura, duplo significado e, não raras vezes, o artista trabalhou com a conjugação de dois objetos. A idéia do duplo tendo sempre por objetivo criar, a partir de duas coisas, uma terceira.
Toda a série desenvolvida com o título de Hommage aux Mariages (homenagem aos casamentos),1989, parte desse princípio. E nela as significações proliferam. Tentaremos cercar algumas.
Primeiro, o título. O som das palavras, em francês, soa de tal forma semelhante que é quase como se repetíssemos a mesma palavra duas vezes. É uma cadeia sonora única. Duas palavras diferentes e dois sons iguais ressaltam a própria idéia do “casamento”, entendido como a distinção perdida na simbiose. Há ainda na palavra “hommage”, uma remissão à “homme” (homem), assim como “mariage” contém Maria, nome feminino. Hommage aux Mariages, por sua cadeia indistinta de sons, indica, por extensão, a indistinção entre pessoas e a indeterminação sexual. Hommage aux Mariages é, assim, uma homenagem à impossibilidade do casamento, e, nesse aspecto, um tributo a Duchamp e a seu Grand Verre.
Depois, a cor. Todos os trabalhos dessa série, e não foram poucos, são amarelos. A mesma cor, em vários “casamentos”, uniformiza a variedade, indistingue os pares, reduz o duplo a uno.
Em seguida, a natureza dos objetos escolhidos. Exemplos: duas escovas de cabelo de plástico, daquelas redondas de camelô, bem populares, unidas por seus próprios dentes e penduradas do teto; duas cadeiras de comida para bebê, amarradas por fios de náilon; dois aparelhos de barbear, costurados. Objetos da vida diária, inofensivos, vulgares, que adquirem um senso de estranheza incomum, que, de cara, abate a noção da união, do “mariage”, simplesmente por não fazer sentido essa união, nessa situação. No contexto proposto, no

“casamento”, os objetos não realizam as funções que vieram desempenhar no mundo. Seria então o casamento uma aberração ? Convenções são aberrações ? Não caberia à arte comentar os despropósitos do mundo, da vida convencional ? A convenção, por princípio, impede o arbítrio, e arte é puro arbítrio, suas decisões dependem de uma vontade. No fundo, como mencionamos acima, o trabalho de Marcos Chaves se opõe ao poder, articula-se de forma a reagir à autoridade convencional, quer seja ela de natureza psicológica ou social, aí entendidas as convenções da própria arte.
É importante notar, porém, que tudo é construído de maneira a manter a opacidade do objeto e, mais ainda, a opacidade do sujeito, que declara apenas obliquamente a sua “vontade”. Nada se apresenta com clareza imediata, apesar da aparência singela e espontânea dos objetos. As coisas se protegem atrás da estranheza, os significados se esquivam, e o sujeito também resvala na falta do lirismo. A atividade mental, objetiva, que ultrapassa a expressão lírica, não implica, porém, e necessariamente, um pensamento a priori. Não há o projeto, e depois a materialização. As coisas surgem juntas, no ato, como em Cézanne. No fundo, é a mesma operação. O objeto ergue-se ao se articular por inteiro, mesmo que a forma não se pretenda mais “estética” e a idéia se sobreponha. Palavras e coisas demandam-se umas às outras. O resultado formal é aquele que surge na conjunção mental do ato que institui a obra, na emergência da atitude.
Quanto à natureza não-estética dos objetos, desses produtos, afinal, anti-formais, remonta à velha discussão sobre a relação entre arte e indústria, sobre os processos que buscaram lançar a arte na vida real, e sobre a questão de que o objeto de arte possa ser substituído pela idéia do trabalho. Em seu texto Desestetização, de 1970, Harold Rosenberg pontuou: “o princípio comum a todas as espécies de arte desestetizada é que o produto obtido, se é que há algum, é de menor importância do que os processos que o realizaram e dos quais ele é o sinal”. (5)
Essa “espécie” de arte, feita com materiais e fatos reais e imiscuída no cotidiano, resiste às técnicas artísticas tradicionais, não é dirigida à satisfação dos sentidos, e propõe, ao invés, uma interrogação fundamental a respeito de sua própria natureza e do papel que pode cumprir hoje no mundo. Ela é, para usar o termo de Rosenberg, o “sinal” dessa investigação. Com isso, ao se desestetizar, vai contra todo o pensamento formalista que descende de Clement Greenberg, e afronta o primado da Forma, das técnicas e das convenções. Em vez de restringir-se ao que pertence estritamente à experiência visual, dá-se como experiência intelectual, lança mão de outros códigos, e sai do domínio puro do visível. No lugar do valor estético, o ato mental; no lugar do juízo de gosto, a indiferença: no lugar da racionalidade, o absurdo; e, ao invés do fazer, o escolher. O oposto do raciocínio greenberguiano.

Um dos trabalhos mais radicais de Marcos Chaves no sentido da desestetização foi a instalação de 1990, Comfundo. Constituía-se de uma série de sacolas de papel pardo e alças de plástico preto, emendadas uma à outra na vertical, de maneira a criar colunas. As colunas eram penduradas do teto pela alça e não chegavam a tocar o chão. Apenas a primeira sacola, presa ao teto, tinha alça, e apenas a última tinha fundo. O efeito era de sacolas extremamente compridas, absurdas, como foi o gigantismo das esculturas de Claes Oldenburg. O ambiente da galeria era saturado dessas colunas, perfiladas em linha reta, mas compondo um labirinto. O caminhar do espectador no espaço não o levava a nenhum lugar em especial, e a experiência se esgotava em flanar entre as colunas, sem destino. É importante notar aqui que Marcos Chaves tem formação em arquitetura, e que a função dos pilares de sustentação de edifícios estava sendo parodiada ali com humor, acentuando-se o fato de estarem suspensas e balançarem com o vento ou com o deslocamento do ar provocado pelos passantes. Elas deixavam a arquitetura a descoberto, sujeita à fragilidade de uma má “engenharia”. Sacolas insignificantes, antes usadas em supermercado, adquiriam ali uma significação incomum. A lógica imprevista de seu uso, alterado por efeitos de imaginação, a precariedade do material e a leveza dos volumes vinham confirmar o non-sense da operação. Na verdade, a própria noção de “suporte” era questionada: suporte da construção ideal, suporte do trabalho de arte, suporte do significado, suporte do espaço, suporte da forma. Inoperantes, as colunas não “suportavam”, ao contrário, eram móveis, frágeis, agentes de uma arquitetura incongruente, sustentada pelo vazio. E a fronteira entre os vazios pode ser uma folha de papel ou um saco com fundo. Eis então que o título se impõe, fazendo a junção no termo “Comfundo” e mantendo o duplo significado explícito. O caráter serial do trabalho, por sua vez, afirmava obsessivamente a duplicidade, ou ainda, a multiplicidade. Não há lugar para o original, para a unidade, idéia que remonta, novamente, aos processos industriais e à repetição, e que fundamentou a Pop Art americana. O objeto passa a ser apenas elo de um processo em cadeia, indistinto.
Manobra semelhante marca outra instalação, Lugar de Sobra, de 1995. Novamente o sentido da série tenta a uniformidade, só que agora cada objeto preserva um mínimo de individuação. E de novo o material é desestetizado ao extremo. São peças de mobiliário, mais especificamente banquinhos usados, velhos e deixados a esmo pelas ruas. O trabalho aponta várias leituras. Para começar, não se trata mais de um produto industrial, mas de banquinhos feitos a mão, na maioria obra de um “jeitinho” pobre e popular, que constrói utensílios com refugos de madeira, com sobras. Mas, o artesanato não se eleva à categoria de produção “acabada”, muito menos empresta ao objeto uma estética. O objeto acaba por possuir o mesmo espírito do assemblage dadaísta: uma forma dissociativa, feita por acumulação de pedaços, por justaposição de partes, uma anti-forma.

Dissemos que cada banquinho mantém uma individuação mínima, porque, de fato, são diferentes uns dos outros, mas a precariedade de sua construção, o aspecto surrado de todos e a indefinição de seus contornos é tamanha, que eles não retêm o olhar de ninguém, não realçam qualidades. No fundo, são tão indistintos quanto um produto da indústria feito em série, tão “insignificantes” quanto queriam ser os readymades de Duchamp. São produtos igualmente casuais, e que tornam a casualidade da escolha mais indiferente ainda, qualquer um serve.
Outro dado importante é que os banquinhos são colocados em exposição e podem ser utilizados pelos espectadores para se sentar. Eles substituem os bancos que existem normalmente nos museus para que o público contemple a obra. Só que eles são “a obra”, e o objeto da contemplação falta. O mundo é esse objeto. Lugar de Sobra inclui a obra, o público e o resto do mundo no mesmo lugar, por isso ele é de sobra, é amplo. É de sobra também porque são muitos os banquinhos e ocupam grande espaço. E é de sobra porque os objetos são sobras do mundo, o resto. É o lugar do refugo, do lixo, da pobreza e da carência, mas é também, paradoxalmente, o lugar da fartura. Falta e sobra ao mesmo tempo.

A partir do final dos anos 90, Marcos Chaves passou a produzir a partir de fotografias. Tudo a ver com a natureza de seu trabalho, considerando que o processo fotográfico pode corresponder à manobra do readymade. A operação da fotografia, o ato fotográfico em si, acompanha muito de perto a lógica do ato de Duchamp.
Philippe Dubois afirma que o tempo fotográfico é descontínuo, porque o gesto do fotógrafo, o cut que ele efetua no contínuo do real, suspende a realidade e a isola do tempo crônico, evolutivo. É uma operação que separa uma fatia do mundo do resto do mundo, que congela esse fragmento no instante, tornando-o um instante perpétuo, eternizado. O recorte efetuado sai de “nosso tempo de seres humanos inscritos na duração, para entrar numa temporalidade nova, separada e simbólica” (6). A fotografia não se dá progressivamente, como ocorre na pintura. Ao contrário, o fotógrafo “corta” e é esse corte que determina a imagem. A imagem não é “composta”, ela vem por inteiro, de uma só vez, subtraindo uma parcela do mundo em bloco, captando todo o objeto, já pleno. Esse corte radical da continuidade é o ato que fundamenta a fotografia. Ora, sabemos que Duchamp instaura o readymade depois de sua experiência na pintura, depois de observar que o métier pictórico era impotente para enfrentar a realidade da máquina, inclusive a da máquina fotográfica. O readymade veio justamente declarar a falência do “fazer” pictórico, do exercício progressivo desse fazer manual e compositivo. Na verdade, o readymade é o sinal da impotência do pintor na sociedade industrial, e seu aparecimento deve-se ao declínio da pintura e à redenção da arte enquanto idéia. A mesma lógica que governa o ato fotográfico, governa o ato duchampiano. O readymade é também uma escolha que suspende o objeto do contínuo de seu meio original, da sua cadeia progressiva, também o retira do curso natural de seu funcionamento e sua significação. O readymade é outra sorte de cut, que interrompe o fluxo de um objeto, deslocando-o para outra ordem simbólica. E também ele já é o objeto pleno, inteiro, captado por uma subtração efetuada no tempo e no espaço. O disparo que preside a operação fotográfica é o mesmo disparo que isola, no readymade, uma porção do mundo.
É importante sublinhar que Marcos Chaves não é fotógrafo, não pretende que as imagens fotográficas com que trabalha sejam imagens “artísticas”; a foto sendo tão somente esse disparo que colhe imediatamente a fatia do real que lhe interessa. O readymade não precisa ser, necessariamente, um objeto, um elemento tridimensional, uma coisa. Ele pode estar em qualquer situação já dada, já feita, e essa situação pode ser a paisagem, uma cena achada nas ruas, ou pode ainda ser foto de alguma coisa especial, uma intervenção do próprio artista, mas que, por ser apreendida no imediatismo do disparo, é capaz de dar ao artista a imagem que interessa mais rapidamente. Além disso, a foto tem a particularidade de multiplicar o trabalho, reproduzí-lo em grande número, efetivando uma das principais premissas do próprio readymade, que foi a dessacralização da obra de arte e do mito da autenticidade. E mais, com as técnicas digitais de hoje, os artistas podem lançar mão de artifícios ágeis de construção e criar assemblages, por exemplo, com uma facilidade que teria maravilhado os dadaistas.
O trabalho de Marcos Chaves que se tornou mais notório no âmbito do uso da fotografia foi o eu só vendo a vista, de 1997. Trata-se da apropriação do Pão de Açúcar, ou melhor de um ícone da cidade do Rio de Janeiro, imagem com que nos defrontamos todos os dias e que sofre o desgaste dessa recorrência, tanto quanto a bandeira norte-americana em relação a seu país, aos olhos de Jasper Johns. Mais do que tratar o Pão de Açúcar como readymade, o que Chaves se apropriou foi da imagem turística da paisagem, vendida aos montes como cartão postal. A ponto desse postal fazer a “beleza da natureza” tornar-se “indiferente” para nós. Deslocar o cartão postal das bancas de jornal ou das agências de turismo para o campo da arte não significa porém re-qualificar o Belo natural. A idéia deve ser, antes, a de desviar a paisagem, a natureza, para o campo intelectual do pensamento que vai agir sobre ela, transformá-la. E aqui entra a inserção da frase “eu só vendo a vista”, com toda a sua ambigüidade semântica. O fato do artista ter retirado a crase da expressão “à vista” foi essencial para que essa ambigüidade se cumprisse. Desdobrou seu potencial significativo para várias leituras. Ali estão contidos os enunciados: “eu só, vendo a vista” (o sujeito solitário que vê uma vista); “eu só vendo a vista” (o sujeito que só vende a fotografia da vista, o cartão postal – ou o sujeito-artista que só vende a obra em suporte fotográfico com a vista retratada; ou ainda o sujeito que só vende os olhos) e, por último, “eu só vendo à vista” (o sujeito que não vende a prazo, ou o sujeito-artista que não aceita parcelamento do mercado).
Essa obra teve três versões. A primeira, que deu a Marcos Chaves o Prêmio de Viagem ao País do XVI Salão Nacional, foi realizada em vídeo e o “cartão postal” era vivo, embora o espectador distraído pudesse nem notar. A imagem parecia fixa, mas na verdade pulsava e notava-se que, à distância, no tecido urbano, um pequeno carro passava, por exemplo. Por cima dessa imagem quase parada, corria pela tela de projeção, como um letreiro luminoso, a frase-título, e sempre de tal forma que nunca partida ao meio ou faltando qualquer palavra. O estudo desse looping foi feito com precisão matemática para que se mantivesse a integridade do enunciado durante todo o seu correr sobre a paisagem.
A segunda versão, em gravura off set, deu ao trabalho o caráter de múltiplo, como os cartões postais, vendáveis e acessíveis, como os cartões postais, com pagamento à vista. Essa segunda versão dava estruturalmente à obra um prosseguimento natural, na prática, das próprias questões que apontava. Reconduzia o readymade à cadeia de sua circulação pública, a seu status quo original, mesmo que enxertado por uma proposição estranha. E aqui cabe lembrar as garrafas de Coca-cola de Cildo Meireles, obra dos anos 70, que também voltaram ao circuito de distribuição após interferência do artista.
A última versão, em processo digital, foi exibida em painéis eletrônicos de várias cidades do Brasil, atingindo, finalmente, a distribuição em massa, e contribuindo para fechar o circuito do próprio pensamento do trabalho. Creio não ser necessário aqui relembrar o discurso de Walter Benjamim a respeito da reprodutibilidade da obra de arte na era das técnicas modernas, e das implicações sobre a perda de sua aura enquanto objeto único, autêntico e original, pensamento este que esteve na base do ato duchampiano.
Outro trabalho “fotográfico” da trajetória de Chaves, mais recente, chama-se Landescape (1999), isso mesmo, como um “E” inserido no meio da palavra. Com o comentário desse trabalho, fechamos nosso texto, e ele é providencial nesse sentido. Landescape constitui-se de três fotografias de grandes dimensões, montadas numa cabine, em perspectiva, de maneira que as duas fotos laterais se dirijam ao ponto de fuga, que é a fotografia central. De cara, precisa-se dizer que são fotos de paisagens, que são “belas” e bem realizadas tecnicamente. Aí começa a questão. O trabalho pretende provocar um curto-circuito em relação aos padrões clássicos da representação, a partir desse mesmo modelo de representação. É aposto de forma a manter a perspectiva tradicional, mas, ao mesmo tempo, articula-se por partes isoladas, que podem ter existência própria, sendo cada parte uma “janela do mundo” por si mesma. A montagem determina a percepção cinemática do trabalho, com uma articulação semelhante à da seqüência de frames no filme, o que é uma operação moderna, e se destaca dos procedimentos clássicos. Além disso, o espectador, ao entrar na cabine, penetra fisicamente no espaço do trabalho, o que já é uma operação contemporânea. Trata-se de um nó que embaralha os diferentes espaços plásticos firmados ao longo da história, fundindo-os e separando-os simultaneamente.
A apropriação da paisagem como readymade se sustenta, e agora também as inscrições verbais já estavam ali, naquele lugar, bastando clicar com a máquina, no melhor ângulo do recorte que as colocasse na ênfase interessante. Em cada foto existe uma palavra, pertencente àquela imagem, tal como foi encontrado no real. Na foto da lateral esquerda, uma enorme extensão de céu linearmente azul, luminoso, cortado por um fio elétrico, onde se pregou uma placa amarela que diz “Parada”. Na da lateral direita, outro céu, nublado, turbulento, onde o movimento das nuvens, desenhando uma linha quase reta, parece uma seta que aponta para outras palavras - contidas em uma placa que não foi clicada por inteiro, e que diz “Local perigoso”. No centro, a fotografia de um buraco no meio da rua, com uma cruz de madeira fincada, onde se lê “Buraco”. Essa cruz improvisada, feita por gente comum dos bairros da cidade, é uma sinalização espontânea, inocente, de alguém que quer proteger contra o perigo. É uma imagem cômica e trágica, leve e pesada, crítica e indiferente. Desperta, de dentro da sua inocência, o sentido da fatalidade. É cruz, é buraco, é morte. E a morte é o ponto de fuga da “composição”, lá onde converge nosso olhar, onde os céus nos levam, os céus que já sinalizavam o “local perigoso” e a “parada”. Os céus que tanta dificuldade causaram para os pintores naturalistas, os céus que foram, no mundo da representação ilusionista, um verdadeiro inferno. A perspectiva é o buraco, morto.
A morte é também o símbolo último da operação fotográfica. Dubois diz que a ação do cut fotográfico sobre o real, coloca o real fora do tempo vivido, “congelado na interminável duração das estátuas” (7). Ao suspender o tempo crônico, corta o que é vivo dessa duração, isolando o fragmento em um fora-de-tempo anacrônico, que é o tempo imutável das imagens. A fotografia corta o que é vivo e eterniza o morto, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, o exibe para sempre. É a imagem retirada da cadeia do tempo vivo que vai fazê-lo, ao matá-lo, permanecer. Marcos Chaves, com suas próprias palavras, intui o discurso de Philippe Dubois, quando declara que, depois de clicada a situação, “vou embora e a coisa continua lá, normalmente, como sempre esteve, mas eu me apropriei dela de alguma forma”. É o mesmo que o escritor francês pontua ao dizer que a fotografia é como “uma lembrança de parada, de congelamento, de escapada do mundo que continua sem mim” (8).
Complexo e prolífero como todo o conjunto da obra, Landescape ainda concentra no título as ramificações que comporta. O “escape” (escapar) aponta para as novas vias abertas pela arte para se esquivar da Tradição e da Morte da própria arte. Indiretamente, reporta-se à morte da pintura, especialmente aquela que se baseou na ilusão da profundidade, à morte do Belo, assim como alude ao renascimento da arte enquanto idéia. Alude e pratica. Por outro lado, mantendo o cerco intelectual do trabalho, avança por caminhos que desembocam na condição humana, condenada a viver sob o jugo da máquina, do consumo, das convenções, das ambigüidades e da morte.


fonte : Nara Roesler 10.04.2010


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Marcos Chaves nasceu no Rio de Janeiro em 1961, e iniciou sua atividade artística na primeira metade dos anos 1980. Trabalhando sobre os parâmetros da apropriação e da intervenção, sua obra é caracterizada pela utilização de diversas mídias, transitando livremente entre a produção de objetos, fotografias, vídeos, desenhos, palavras e sons.


"Marcos Chaves surpreende significados e valores imersos nas coisas vulgares, dissimulados no hábito ou na convenção. Faz deslocamentos imprevisíveis e produz assemblages em tom de paródia, destilando aí a sua aguda observação sobre o mundo, da tecnologia ao lixo."
Ligia Canongia

Participou de Bienais como Manifesta7 - The European Biennial of Contemporary Art, Bolzano, Itália, 25ª Bienal Internacional de São Paulo, SP; 1ª e 5ª Bienais do Mercosul, Porto Alegre, Brasil, 4ª Bienal de Havana, Cuba; 3ª Bienal de Lulea, Suécia.

Realizou exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior, em instituições e galerias como o Mori Art Museum, Tóquio, Japão; Martin-Gropius-Bau, Neuer Berliner Kunstverein (NBK) e Ludwig Museum, Alemanha; Fri-Art - Centre d'Art Contemporain de Fribourg, Suíça; Espace Topographie de L'Art, Paris, França; Vantaa Art Museum, Helsinki, Finlândia; Butcher's Project, g39 e Northern Gallery, Reino Unido; Iziko South African National Art Gallery, África do Sul; Centro per l'Arte Contemporânea Luigi Pecci, Prato, Itália; MIS e Galeria Nara Roesler, São Paulo; Galeria Blanca Soto Arte, Madri, Espanha; Galeria Laura Marsiaj, Progetti e Galeria Artur Fidalgo, Rio de Janeiro.


fonte : http://www.marcoschaves.net/info/index_pt.htm

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Fonte cda

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