Biografia |
Giovanni Battista Piranesi nasceu em Mogliano di Mestre, perto de Veneza, em 1720 e morreu em Roma em 1778. Foi arquitecto, arqueólogo, teórico, decorador de interiores, designer de mobiliário e, para além de ter inovado a veduta até ultrapassar o próprio gênero, é um dos maiores expoentes da Gravura européia. A sua abordagem da Antiguidade, em termos estéticos e teóricos, teve uma imediata e duradoura influência no Neoclassicismo em toda a Europa e o seu gênero criativo perpassou o século XIX, foi retomado pelo Surrealismo e perdura até à atualidade.
Filho de um construtor aprendeu arquitetura, engenharia, recebeu formação em cenografia, em perspectiva com o gravador Carlo Zucchi e, ainda em Veneza, freqüentou os círculos onde eram debatidas questões teóricas sobre arquitetura e canons clássicos, que lhe despertaram o gosto pela arqueologia e pela controvérsia. Deixou Veneza, onde florescia a produção de vedute em que Canaletto se evidenciava, e chegou a Roma em 1740 na comitiva do Embaixador de Veneza. Aí, foi assistente do gravador Vasi que, juntamente com Panini no campo da pintura, dominava o mercado das vistas de Roma. Na época, a Cidade dos Papas era passagem obrigatória do Grand Tour e, na cidade cosmopolita e efervescente das idéias das Luzes, Piranesi iria contratar artistas, escritores, intelectuais, arquitectos e patronos que afluíam de toda a Europa, nomeadamente de Inglaterra. Produz as suas primeirasvedute de Roma em pequeno formato para Guias de turistas e, em 1743, publica as suas primeiras doze águas-fortes, Prima parte di architettura e prospettive. Iniciar-se-ia, assim, uma carreira operosa de cerca de quarenta anos durante a qual produziu mais de mil pranchas publicadas em dezanove obras pela sua própria casa impressora.
Para além de uma das mais extraordinárias obras jamais produzidas a água-forte, Carceri (1.ª ed. 1749-50; 2.ª ed. 1761), destacaremos as Vedute di Roma (ca 1747-1778) produzidas em grande formato ao longo de toda a sua vida: constavam, à data da sua morte, de 135 matrizes e refletem, na generalidade, a evolução artística e o percurso intelectual de Piranesi. O termo veduta aplica-se a uma pintura, desenho ou gravura representando uma cidade, um monumento, um lugar, com uma concepção acentuadamente topográfica. As vedute têm a sua origem nas peregrinações a Roma no século XVI e em Itália tornaram-se num gênero, conhecendo o seu apogeu no século das Luzes, nomeadamente em Veneza e em Roma. No entanto, seria Veneza a ver surgir os seus maiores inovadores: Canaletto, Piranesi e Guardi. Piranesi iria transformar a vista gravada para souvenir de turistas intelectuais e aristocratas "num sofisticado meio de comunicação erudita com grande carga de emocionalidade". Para além da sua formação e da tradição pictórica veneziana ligada ao esboceto e aos cambiantes atmosféricos em que o espírito barroco e a sofisticação do rococó encontraram terreno fértil, Piranesi situa-se no tempo da redescoberta da Antiguidade: Herculano em 1719 e Pompéia em 1748. Profícuas escavações arqueológicas foram realizadas em Itália e na Grécia e, em 1764, Winckelmann publica o importante trabalho teórico e de erudição, História da Arte na Antiguidade.
Por outro lado, a estética neoclássica, relativa à sobrecarga ornamental do rococó, dando primazia à linha sobre a cor, à simetria, e evitando a plasticidade do claro-escuro, abre uma brecha provocada pela tensão entre a razão e a sensibilidade, deixando escapar uma tendência "fantástica", herdeira da paisagem rocaille. Esta tendência vai ser validada pelo conceito de "Sublime" que no pensamento e no gosto de setecentos teve um grande impacto. Originário da Grécia clássica (Do Sublime, atribuído a Longínquos, século I D.C?), o conceito foi, entre outros, amplamente retomado por Edmund Burke, que, em 1756, publica Philosophical enquiry into the origin of our ideas of the Sublime and the beautiful: diferindo do Belo, o Sublime, através de qualidades como o vasto, o irregular, o obscuro, o supra-humano, o colossal e induzindo o terror, instituía-se como evocador das mais intensas emoções. Apesar de criticado por Kant, o conceito teve uma profunda recepção na segunda metade do século, estimulando o interesse pelo excesso, pela violência da Natureza e abrindo caminho ao Romantismo.
Como todos os artistas de exceção, sensíveis às novas idéias e, simultaneamente ultrapassando-as, Piranesi reivindica também a "poética da ruína" decorrente do seu interesse pela arqueologia e metáfora adequada às novas teorias estéticas e filosóficas. Assim, praticará a veduta, direta ou de reconstituição fidedigna segundo fontes documentais, e a veduta ideata, onde a ruína servirá de matéria para a sua vertente apaixonada e trágica.
O exemplar de Vedute di Roma aqui apresentado foi comprado em 1773 (*), ainda em publicação, para a Biblioteca da Real Mesa Censória, que viria a constituir o fundo primitivo da Biblioteca Nacional, juntamente com mais onze obras, perfazendo dezasseis volumes: relativamente às obras piranesianas publicadas até esta data (segundo Wilton-Ely), estavam em falta as três primeiras e, dos Opera varie, apenas chegou até nós Trofei dOttaviano Augusto. A obra, que foi aparecendo sucessivamente no mercado em estampas avulsas ou em grupo, revela o domínio das várias técnicas de composição e efeitos de impressão, sendo de notar que Piranesi retomara o verniz duro de Callot, então em desuso entre os gravadores da época. Nos anos 50, os seus interesses arqueológicos acentuaram o caráter topográfico da representação; a partir de finais dos anos 60, o declínio da proteção da família papal, os Rezzonico, e o acréscimo da procura, levam a um aumento do ritmo de produção da oficina com resultados, por vezes, irregulares. Por outro lado, a sua relação pictórica com a gravura liberta o seu estilo livre, cenográfico e impetuoso: modela pela luz e manipula a perspectiva, transborda a quadratura e o trabalho de gravação ocupa toda a prancha. As figuras humanas também sofrem uma evolução: de integradas e narrativas no seu espaço próprio, passam a atemporais elementos dinâmicos da composição, apenas esboçados, lembrando Callot e Della Bella.
A natureza e a arquitetura, a Roma antiga e a cidade do Grand Tour entrelaçam-se num organismo vivo e, portanto, sujeito à mudança e à morte: perspectiva trágica da condição humana, desprovida já dos instrumentos teóricos da razão e da ética das Luzes. A graduação exponencial do desmesurado, o melancólico, o terrífico e, finalmente, o trágico, conduzem ao confronto entre a fragilidade da razão e a força da natureza, fermento da idiossincrasia romântica que (em vão) tentaria certa forma de apaziguamento através do sentimento místico do encontro consigo mesmo em harmonia com uma natureza primordial.
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